quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Les invasions barbares

Que alegre essa pequena distância
que sinto encontrar dentro de mim
como quem tropeça num quarto velho em pó
e se maravilha pelas coisas que jamais caberiam nele

E se eu escrevesse umas linhas tortas e avulsas
umas rimas pobres de vivências torpes
eu me contentaria com minha mediocridade
desde muito eu já então saberia
que se tivesse nascido em outra língua
teriam sido essas as primeiras palavras
de um grande obra
Eu sou um mundo inteiro para me condenar ao póstumo abortado

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Erosão

E ela jamais saberá
do quanto ele aprendeu
nesses tempos de solidão
do seu beijo e do seu amor
e a verdade que não se conta jamais 
é aquele pequeno traquejo roubado
aquela referência desavisada e inculcada
que fez dele um amarrotado mapa amarelado
marcas de um amor em alto relevo
e das chuvas de todo um tempo de silêncio

domingo, 20 de novembro de 2011

Medo


É sempre o medo do feio e nada mais. Mesmo agora, que eu posso olhar pela janela e não fazer nada nem quando eu faço de fato, eu tenho esse fantasma e o carrego imo amuleto no peito.
Se chovem os dias e as noites até que não mais, será um mistério esse do fantasma que não assombra, esse do medo morto? Que eu matei meu medo, sozinho, numa noite dessas, que sequer cumpria o mínimo de um ritual profano e antigo, isto é, que sequer silenciou todos os pequenos sons e sonhos que o não-eu adivinhava os degraus da escada do lugar que nunca foi a cama da minha cama às madrugadas todas?
É, mas eu o matei, eu acho. Pois não o sinto e o procuro ainda. E é tão sem tristeza e saudade, é quase como uma coisa. A ideia da coisa, por quê não? Sequer me ardem espinhos nos dedos ao desvelar o puro sólido dos grãos aos pés - eu não irei colhê-los.
Mas aí que vem o segredo. O segredo não é um fato, se faz no silêncio, essa é a metafísica das verdades primeiras - é falar da morte e sentir a vitória; deitar na areia e beijar a donzela acometida pelos ventos inclementes de serafins invejosos de um maior amor do que o da criação engendrada. Silêncio é por onde se dá a volta no tempo e dá sentido à música.
E boa música é aquela na qual nunca se sabe se se comemora o som, ou se celebra a sua morte, ou os dois, talvez. Não sei, sínteses tais como essa me cheiram a trapaça, mas duvido muito de que a vida não seja a maior trapaça de toda a pré-história - como se tivesse vida antes da vida.
Talvez fosse esse o fantasma que me assombrava as noites de criança; que eu estava sempre com medo. Meu primeiro amante, o medo me paralisava na cama e eu tinha de dar meu melhor para superá-lo, as artes da corte estrepitosa (apesar da fagulha redentora só se dar muito depois, além dos olhos cor de areia e de mar das noites sem sujeito de qualquer um que tenha a fome de amor).
Deitava solene para um medo que era só meu (e isso o fazia não só mais medo para mim, como me fazia mais eu para o medo) e eu era tão pequeno que o meu medo podia me acabar de uma só vez. Isso era o sonho, que quando incapaz de me satisfazer não era pesadelo. Se eu lesse então, mas eu era pequeno, novamente, e aquilo era um pesadelo de criança, o mais terrível, pois é o mais real de todo. Tão bem um adulto não teme o sono, um velho não teme o sexo, e aí que está toda a tragédia da cultura ocidental - chamaria isso de tempo, mas aí estaria sendo mais repetitivo do que não gostaria de ser.
Fechar os olhos e ver os monstros, monstros que sempre foram todos os monstros. Acordar a salvo numa manhã de terça-feira e se lembrar de que antes do tempo bater um segundo sequer em contas de grãos de areia, eu era além de tudo o fogo desse medo era muito. Disso surgiu o grito mudo, que só agora meus ouvidos tardios escutam no premir dos dedos às letras - derradeira tecnologia, o quanto do conhecimento não é póstumo? - e que eu danço quando sou feliz, o que, hoje em dia, é quase sempre.
Mas é claro que quando se tem medo da noite por não ser dia, e medo do dia por poder ser noite, que podem dizer uns pros outros que a felicidade é fácil e feliz. Não. A felicidade é um momento crítico, é um chamado às armas da espécie, um se aferroar aos ossos e a carne primieva, oriunda do primeiro sopro de pó de outrem, estrangeira estrela que não o grande Sol. É preciso uma crueldade clínica, medicinal e técnica para se ser feliz bem. A felicidade é o cálculo de tudo aquilo que ri do seu mais terrível, e que, por excelência se define por terrível e atroz. Ondas batem às costas num mar vespertinos e salobro, e cada rechaço em espuma é um saber e tudo pode fazer sentido para quem não tiver medo de prender a respiraração e arder os olhos na cultura da verdade e de todos nós.
Hora da manhã, infância. Hora pequena e eterna que dura até que acaba, como todas as coisas boas, assim de repente. A quebra é o fim, e ter um fim é um bálsamo, qual homem mortal já teve um fim que não fosse anônimo? Quero ter um fim com nome e datado no carbono quatorze, por pura extravagância, por que pra mim ser é uma arte, que se faz desde a cama à cova, com o maior número de parceiros possíveis (e nisso incluo amigos e inimigos, isto é, a família e quem me dá o meu sangue).
É me tão curioso o quanto eu ainda me repito bem, e, se me atrevo a contradição, me imito melhor do que jamais fui. Falo do medo de antes e me agora vem a ânsia de vômito - estou doente, estou louco? - não. Sempre tive um pouco de bruxo, e agora tenho de sê-lo de novo. A urgência da ânsia, da infância, da hora eterna, do nada neutro e insípido. Do rastejar bípede pela existência indigna dos deuses e do fim que acaba quando acaba. Por que eu sempre quis o fim de um eu - eu sempre quis ser todo mundo.
Isso tudo é minha vida, mas isso não é uma biografia, isso é vômito e visceras, tenho escamas de réptil e subo pelo chão que são as suas paredes, meu amigo; chego a Ixtlan pela manhã e não trarei de volta boas notícias (você sabe que eu não amo mais, só quando eu ainda consigo escutar música e ser filho de alguém, mas esse alguém é um só).
A sobre-vida da sobrevivência: querer viver mais do que a vida num único instante, antes do átomo e do tempo e do espaço; antes do grande dilúvio que é vier num mundo seco e úmido onde ululuam os amores findos e secretos - seria isto a minha tão desejada morte, a última amante?
Ah, mas isso seria uma resposta tão fácil e anunciada desde as minhas primeiras noites torturosas sob os lençóis no escuro, que ao me descobrir, me veria quimera, parte criança, parte homem, parte nada. Ainda hoje, quando amanhã eu pensar num amor ideal, pensaria na pulsão das mão ásperas maiores do que as minhas e do quão delicado eu me falseei para poder atrair um outro tão tenaz e ardiloso como eu e confundirmos enfim, aquilo tudo que deu a gênese do mundo dos homens e que Deus viu na maçã e sua serpente: o carinho e a violência - as ânforas unívocas da última saciedade.
Quebrarão-me os ossos e torcerão-me as vísceras os abalos sísmicos dos grandes amores. Na noite de lua do que se segue dos escombros, gosto de pensar que serei capaz de fazer poesia pequena e singela, quase sem nome, mas não sem o metálico do sangue. Só para um dia, para uma promessa, na qual eu terei imolado tudo para não ter mais nada e não sentir libertação, mas só argentinas correntes nos pulsos, bater-me de frente com o mais valoroso inimigo, aquele que me indignará até o fim dos ecos e dos dias (no olho oco de Wotan, Fenrir pula e abrasa a si mesmo; a tragédia caiu junto com o abismo - que se faça, enfim, a grande comédia) e ao qual infligirei sem misericórdia toda a doçura de um amor que não se dá nem para o mundo todo. E a qual resposta deverei fazer ouvidos moucos para não me machucar? Ainda seria de carne se pudesse me quebrar no seu tato brusco, justamente quando adivinhasse o quanto de ternura nisso se esconde - será que alguém aguenta o peso todo da crueldade que necessita cada dia para ser vivido? Ainda mais, se desejar-se ter algo como uma vida toda em uma só pessoa.
Medo, terror, pânico. Tudo pode acontecer e não vejo mais do que um par de olhos e olho eles tão de perto que tudo não é muito mais do que um pouco feio. Assim já olharam os deuses para os homens e a terra foi feliz. Antes da beleza era muito fácil e pouco cordial ser feliz, mas agora, acho que alguma constituição das Samoas deve garantir tal fato como direito irrevogável das pequenas águas vivas a serem tragadas pela sedes das águas expandidas. Vejo olhos e batemos os ossos um contra o outro, e sabemos que nossa cama é partilhada por todos aqueles que já cortamos o pescoço no desfrute mais cruel (será que ele também já asfixiou alguém, como hoje eu ainda desejo fazer - me resta um pouco de reserva, ainda não sou tão jovem quanto queria), mas há a carne, e onde ela há, só há redenção e pecado de abundância.
Púlpito e aclamação e o vento bate sem horas e não há poeira nos móveis, só o pó de toda a história desde que uma mãe amou tanto um filho que deu-lhe de beber do seio sem nenhum desejo (ao menos por aquele instante) e tudo se faz tão rápido e mudo. Ninguém desconfia da eventual traição e ninguém a trairia em seus gestos, nessa dança que de tão última, sempre se fez desde as primeiras noites (a tensão é um choque que não deixa de se sentir nem mesmo no repouso).
Em algum momento do sexo, eu o amei mais do que Deus amou seus nomes num livro de homens, e ele sentiu o mesmo em relação a mim. Um de nós partirá primeiro, mesmo que durmamos abraçados e não saberemos se quem ganhou foi quem ficou ou quem saiu. A farça do castigo é ainda masturbação.
Gozado, me sinto agora um velho tomando seu chá, e olhando as crianças da varanda. Não são minhas, mas sinto que o são. Meus filhos são mais velhos do que eu era quando jovem. Se falo de forma confusa, é porque para mim, tudo isso é muito claro. Mas se me permito uma dádiva de ingnorância e delírio, digo que a morte e o amor são a única saída do tempo, o grande mal de todos os homens. Sem o tempo, não há filhos, não há um dia, não há uma gota de mar para se afogar e não fio de adaga para no peito amolar. E ter para si em um eu é a grande violência que se pode atirar às vistas do tempo, que ri-nos ressentido do grande ardil e enferruja as obras (e no silêncio em dobras, esconde-me um sorriso de sileno e digo: nem o caos já foi)

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Mito


Para onde eu vou quando estou com você, longe de mim? Será que eu escapo até a lâmpada que pende do teto? Ou tento cair das escadas até conseguir? O que me resta disso é muito, mas apenas pouco encaixa em mim. E novamente eu mergulho nesse contraste e sumo de mim. Não que eu não saiba aonde eu fui, mas acho que me devo explicações.
Mas é tão fácil lhe adorar. Tão fácil que posso desaprender a sobreviver quando isso acabar. Num círculo de atos finitos e mecânicos, como os entendíveis, só se sobressaem inescapáveis o começo e o fim. E o nós é perder a hesitação entre os dois. Isso foi uma pergunta, mas o questionamento estava tão fundo em mim que soaria insincero admitir que reconheço essa dúvida.
Sei que não estou em posição de lhe demandar nada, mas já que já lhe capturei a atenção para esse solilóquio que se desenrola num reflexo que brilha na superfície, vindo do fundo da mente, eu lhe pergunto, tão final quanto só eu posso ser dentro de mim: Por que eu não digo nada quando eu falo com você?
Por que só o vácuo do meu interno propaga o som da minha voz que importa? Por que você me priva de mim mesmo? Isso é o amor? Eu não o sabia então. Desculpe-me, mas eu não sabia. Acho que isso me sentencia à você. Porque eu acho que quero. Desculpe-me, mas mesmo que eu todo respire uma desculpa e contorça um perdão eu continuo querendo.
E, se não posso falar, me disponho dos títulos e me torno anônima besta e faço uso de toda força para você me querer até as suas gengivas sangrarem na agonia feliz de quando se morde e esmaga uma coisa com os dentes sem triturá-la. Eu adivinho a sua animalidade e isso me dá uma conquista. Não, não estou tão indefeso e entregue quanto eu gostaria. Mas também não sei se já duvido da sua capacidade de me reduzir a isso: à satisfazer os meus desejos.
Por que se não o filme acaba e o livro se fecha e a orquestra pára. O nó último se desfez.
Eu descia pelas paredes por uma tira de tecido de mundo atada por laços cegos complexos, e se você os desfizer acaba a mágica e eu sou a mágica. Sou a fumaça e alguém apagou o fogo, e eu ainda não sei para onde eu escapo quando não presencio a mágica. Quando eu não estou.
Qual é o crime de não estar na própria vida? Se você me convencer de seu amor, talvez eu me penalize de você. Será que se você me amar eu paro e não te amo nunca mais, assim nú e cheio de absolutos como estou agora que me sinto forte e longe?
Ah, mas eu estou me desvendando. Nó por nó, cada volta levantando pó ao ser desfeita, infalivelmente - porque me torno tão ser por excelência, tão terrível, mas sem luxúria quando me preencho todo de eu e sinto que só de estar no que é meu me torno forte e tônus, inflexível na minha falta de forma e presságio - pó, a marca de alguma coisa. Eu só consigo falar porque comigo eu tenho dúvidas e eu questiono. Eu posso falar e mentalizar “eu”, mas o que prevalece é o “que”. E esse “que” é eterno e quando ele se acaba tudo que resta do que ele respondeu é pó. Isso é de todos nós e não é segredo, por isso ninguém quer. Mas ainda assim eu roubo.
De você, do sangue, da comida e das coisas pequenas que eu mato todo dia por negligência ao não me viver, porque eu lhe forço a me sequestrar. Temo que meu cativeiro em você possa lhe envenenar. Eu definitivamente não sou bom para a saúde de ninguém. Precisaria então de ter um ninguém valendo por mim?
O toque do ninguém nos meus braços, o beijo do ninguém na minha garganta exposta que sinto em cada guilhotinada dos segundos vividos e por fim sua adaga subcutânea e justiceira. Esse é o preço da regalia.
Mas agora eu sôo forte na minha cabeça, esse som bate físico na minha nuca e ressoa mudo no palato duro e canta sozinho com o meu peito servindo de baixo. Louca sinfonia e louco regente e que se faça a erupção da gula que ri na fome de planos em cores sob lentes desfocadas. E essa gula está presa pela tira de nós e é muito pecado para se ver presa, mas também quem conseguiria distinguir nessa subjetividade contida o externo do interno? Ninguém conseguiria. E é por isso que preciso dele.
E você foi deixado em algum quanto daqui, não foi? Bom, aproveite esse descanso, pois talvez amanhã o dia não comece e eu fique fraco. Sou confiante no meu viver e sinto a inutilidade desses dias que não começam e só servem de ensaio para a chegada fúnebre do amanhã que paira como sombra no hoje. Pois não há quem pense no amanhã como sombra, já que a sombra se projeta atrás do objeto iluminado.
Então o amanhã só marcha como sombra quando se olha do presente para trás. Então como se ver o passado, ou seria isso ele? Não sei, não acredito nos dias e só no Eterno, e na eternidade nada começou, mas não me faça falar disso porque isso é um segredo. E segredo é tudo aquilo que mesmo dito e entendido permanece no identidade de mistério. Como se existisse um vetor curvo, mas sem axiomas. Pleno na sua existência e falta de entendimento subsequente. Talvez Deus, acho que achei minha fé no segredo. Mas isso não me salva da queda.
Estou segurando os nós em tira e com eles me enrolo na lâmpada do teto. Observo-me descoberto por mim mesmo e me vejo cair. Mas me dissipo no ar e você me respira e exala e num de repente eu me reabsorvo filtrado de um excesso de mim que fui forçado a expelir para poder continuar na superfície do que é a presencialidade do ser.
Mas você me faculta um ter. Desconfio que terei muitos problemas em lhe dividir com todos os eus e vocês que me habitam. E eu sou uma casa mal-assombrada. Talvez se eu lhe matar o espírito você possa me habitar plenamente e ocorram os casamentos: dos meus eu e dos meus vocês entre si para que se precipite sem tormenta a síntese redentora da destilação das essências conhecidas.
Isso, acaricie o meu couro cabeludo, meu cabelo é tão macio nas suas mãos. Mãos que levam tatuadas o signo dos assassinos. No fundo, eu suspeito que sejas como eu, mas já tenha aprendido a se esquecer. Eu me lembro, mas sou um velho muito jovem na sua antiguidade que não conseguia me lembrar de que exatamente, mas apenas de que tenho que me lembrar.
E aí que surge a necessidade e eu me fabrico e consequetemente arquiteto os esconderijos. Você existe? Não importa, sou esquizofrênico e, portanto, promulgo o juízo opcional para quem bebe os sumos da carne, limpos de todo o sangue.
Por que eu não necessito de tudo isso. Eu só preciso das coisas que me garantem os luxos e se tudo isso cessasse, o meu viver seria automático e eu não lhe pertencia, mas sim à inércia da saúde. Eu sou um asceta suicida e sádico que quer se ver sendo o último grão de areia no oásis e virar fóssil.
O que me faz apto a sobreviver é a mesma ciência inata que permite a aranha andar sobre sua teia sem se prender. Eu conheço os meandros por onde correm os rios sem fundo na minha seda e seiva.
Porém, será que toda essa minha mitologia supera a ausência de um eu. Eu miro a pergunta e o feitiço para mim mesmo e o reflexo no espelho cria um infinito que não quero e me diz “Não sei”. Tenho um medo infantil da vida quanto o infinito fala comigo. Eu passo a achar que Deus pode estar obsoleto quando isso acontece, e me surpreendo com isso por que para que eu desfaça esse nó e transformá-lo em elo, fazer da corda uma corrente, é preciso que eu admita Deus em mim. E eu me faço passar por tudo isso só porque eu te amo e quero ser resgatado de dentro da esfinge que me serve de pirâmide - é meu corpo o sarcófago e o meu sexo o tesouro; o quão velho eu sou? Será que mais do que o som da minha voz?
Não sei, não sei me inventar além daqui. As fronteiras são as marcas de onde eu acabo e não tem mais eu para preencher o contorno do que eu sou. E isso é de um alívio tão grande que me deixa dormir de noite e me acabar paulatinamente, que seja, dentro dos meus próprios confins, no meu labirinto.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Lilás

E se olho para além das pontas dos meus dedos
e me deixo pesar o corpo até a queda,
reviro os olhos, revisto as órbitas de estrelas
e canto oco para ninguém,
faço da solidão um trono
e da dor uma espiral que me acende
e me tremula fantasmagórica flâmula.

Corta o mundo a minha voz
em gomos, cindindo da esfera a estática
como se de cristais partissem meus passos
e eu voasse a cada se-deslumbrar
porquê, às vezes, eu me esqueço de que ainda vivo,
tanto é o amor de uma coração a bater
que se pode esquecê-lo pelo além da vida
sem ele deixar de o ser sempre secreto
vértice delicado das asas

e fazer de uma paixão um balão a singrar o céu em chamas
e ver os mares, oh, mas tão aqui de cima
que se beberia as águas antigas que nunca choveram
e ter no toque das pontas da pele, mais que um sacrifício
mais que um rito, irrompe o grito, mais que um sacrifício
espirala o gérmen naturado nas alturas, mais que um rito
irrompe o grito, é sacrifício! Sim, é se perder e olhar para dentro
ter a casa na queda, no sem-lugar dos mundos desertos
 - há tão pouca vida que às vezes, eu espero que não faça mal
ter medo de acabá-la toda de um gole só
é tanta sede e tanto sal que não sei um homem dentro todos
que eu não olhe nos olhos um amor de fome e sangue

ah, mas é tanta a falta de tato, que eu recuo e me adivinho de onde eu jamais estarei
eu não estou aqui, que fica muito mais longe do que eu podia imaginar
quedo espelho em névoas e reflito nos poros as brumas
e pinto a pele esmagando com os pés as pétalas de liláses
e me deixo sentir o cheiro, para então sorvê-lo
- é medo, é me belo, é meu e é só
Sozinho no antes das primeiras chuvas, mas isso só vem muito depois de todo o resto,
até lá sofro o que não se sabe, como se valsasse a juventude numa aposta arriscada

domingo, 25 de setembro de 2011

Aurora

Pode se fazer um primeiro movimento?
Que entrem e dancem vossos pés
é a Aurora e não é hora; é palco
que dancem, dancem! mendigos na fogueira
mendigos nos condomínios e no asfalto
abram alas para as caravanas notívagas
"Alto lá" bradam anônimos, os pedestres "lá vão
homens e mulheres os quais o destino não esqueceu de ter"
Passam camelos e ficam as areias. Dunas e então
é simples, é não-mais - oh, mas ainda fazem amor
pobres tolos, pobres tolos

Desponta e ainda é o tempo pequeno que antecede
o grosso e rude do dia das coisas que se fazem em nomes
cada hora tem sua marca, sua luz secreta e trabalhada
para cantá-las tem de se saber no céu contá-las,
chamá-las na língua mais secreta, tais como
os primeiros pássaros a perderem as plumas
e viverem o cimo e as alturas no vislumbrar que ascende
qual é o desprezo que as grandes e simples vidas sentem
ao olhar para baixo e não temerem abismo algum

Primeiros homens, primeiros dias e inumeráveis horas
labuta que anuncia o tempo, discrição falida indesejavelmente
todos lamentam a falta de pudor, mas o Sol tem que nascer
pois ainda resta alguma estrela que sabe que nascer e morrer
é algo que se faz todo dia, antes de qualquer um se dar conta

E eu aqui, tantos mares entre nós
que faço das águas geladas nuvens
e em malva dissolvo minhas ressacas
e me rio de um minha vida seca, bissexta
- minha voz se perde no pós-mundo
como sei que posso falar, se o que digo
se perde no sem-mais de uma hora que não se acaba
até o fim da acústica no vácuo do espaço
ser mais que carbono, doze vezes trágico
e brilhar na estrela negra que se oculta nebulosa -
faço nuvens e teço meus sonhos nos fios gélidos
oca é a cabeça que se deita e dorme
no relento do toque, na superfície da água
(e vive no imo o líquido) cujo toque da luz
não pode romper o gelo
faço nuvens; mão tece amores
e os olhos olvidam preces
que o coração cruel finge que desconhece
até que um dia que não muito tarda
por fim, reluta e sabe que jamais fenece

sábado, 3 de setembro de 2011

Ocaso

Não mais doce ser da noite, mas
insidiosa senda das brumas infindas nos dias
ah; enfim, o esgar da estática do ocaso último
e a dança das luzes no crepuscular de cada sentir

Mas, por que não sangrar aqui e agora
todo o meu duplo, meus amores em fogo e ganas?
Qual é o medo da acusação de todas primeira e mais justa,
se meus pés são os únicos cujas marcas reconheço
no desfigurar das marcas na ressaca das águas?

Como se perguntas, como se calar-se
pudessem tirar de mim aquilo que sempre soube
desde o berço, o gosto para aquilo
que doí tão mais sem prazer que soa

Mas não, lá vem a manhã e com ela uma reticência
aquela que badala em cada promessa de vida
que verte àurora, glória infinita e urdida no alarido
afinal, é mais uma alma, e mais um porém
que se desfazem até que não mais

E mais uma vez, eu sei
nalgum distante jardim
eu estendo braços sargaços
e nadam as nornas nas horas mornas
de uma tarde ligeira e senil
cujo débil palpitar
encerra todo um coração
que não se cansa de adivinhar
com alegria zombeteira, confesso,
o quão bom é cauterizar-se toda uma vida
nas chamas mais frias e ladinas
e quedar num terrível do ser que só se anuncia

E, agora, bem, resta o fim
(e já nunca mais estive aqui
e era amor tudo que eu deixei para trás
no dia que te odiei e me perdi de todo um viver,
quão não mais canhestro eu me faço
se sei poder seguir, nos fios da vida prima
e silenciar antes do fim das minhas próprias
e longas palavras)

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Tadzio e o silêncio

E quando eu já sei muito antes de saber coisa alguma que resposta alguma poderá me satisfazer, isto é, quando se ultrapassa o transcender do conhecimento, desse estado de alteridade à uma outrora tão confortada ignorância, mesmo quando saber não é ter verdade ou poder, quando só subsiste um sofrer sem cor e som? Ainda é sofrer ou alguma outra aleluia ressoa mouca ao compasso dos meus pés errantes? Mas, eu ainda faço amor e como com igual afã! É engraçado que me surpreenda com isso.
Acreditei no amor e na arte; os confundi entre si, não como as duas cabeças de uma hidra ou como os três nomes de um Deus, mas sim como algo profano e proibido, mas que quer ser de todos (todos? todos os que lhe forem bons o bastante, é claro) - algo como a verdade. Eu divinizei toda a sensação, eu me fiz um templo e sortilégio para todos os ritos e releguei à técnica o segredos dos iniciados, e do gozo, a graça. Minha cristandade está nas minhas palavras ou nas minhas paixões? Vivo o meu reino dos céus quando eu choro escutando minhas músicas, ou quando pinto todas as horas em cores vivas e sei doer cada fibra dos meus lábios a se esgarçarem em sorriso frente às letras de um livro - pois, como não, se após cada silêncio de vida, eu reencarno, três dias ou menos, trago-me pessoa amada a mim mesmo, novo e bebê, eterno samsara?
Se já é muito crer no detrás de cada mundo, o quanto é mais extravagante crer nesse mesmo daqui? Parece-me absurdo que a força toda de um agora não comporte duplos e jogos de espelhos - memória e imitação, lésbicas, mães adotivas do amor e da arte.
Não quero a esperança de uma correção. Apanhar me é muito caro, é mais um sofrimento para quem é mesquinho e vive deles, eu que gozo na doença, que tenho gratidão para com a existência porque eu senti e aprendi, ora quanta auto-satisfação, quanto egoísmo míope que não consegue olhar senão para baixo a fim de se sentir nas alturas, quando não, olha para cima e pensa que já está quase lá!
Não quero algo nobre, ou até mesmo bom, acho que não quero nada de todo. Mas isso tem que ser externado. Falar sobre o nada como tantos outros antes fizeram, ah, minha pretensão é muito maior com isso aqui.
Falo do silêncio - daquele som que todos que vivem da noite sabem. De espreitar e pegar o mundo em flagrante em plena madrugada pós-coital naquele não-som que até irrita se não se estiver disposto para ele e sorrir enquanto sobe as escadas e vai para cama sem saber ao certo onde vai acordar - esse silêncio ninguém quebra e fala baixo, com cerimônia e um pouco de medo, e, quero crer eu, com uma certa atração, como quem o quer para certos momentos, o repouso da labuta, a distenção, o equilíbrio frágil, mas certo e confiável. Até que dele se cansa e se fala e ri! Ah, mas ele foi embora bem antes! Mesmo o mais bruto dos homens tem o senso estético mínimo de esperá-lo passar, como quem vê passar a cauda de uma divindade tropical e tempestiva e olha para ela sem vê-la; e mesmo o mais capaz dos homens não o conseguiria, a grandeloquência e o senso de oportunidade, o timing, o kairos: as distâncias que singram os homens na transporte do silêncio à arte, mesmo que à arte ruim - que não deve ser jamais temida, sequer ignorada, apenas consumida e digerida adequadamente.
Mas se digo antes que amor e arte são unos para mim, como se faz o amor no silêncio? É pela profanação, pela reverência, pelo metafísico? Ah, mas eu sei que amar é um sofrer tão grande, especialmente quando é bom e eu quero fazê-lo tão bem, quero ser terrível, cruel, atroz, com a satisfação pequena de quem sabe que fez algo bem (advérbio para mim de cunho sempre estético) que eu penso em Tadzio.
Não falarei de Tadzio; falarei do que ele criou em mim (além da prova de que arte pode ser mais do que espelho e muleta, da resposta ao anseio primeiro da identidade) - o amor se faz justamente nesses momentos inauditos. Eu sei quando que o meu coração irá se partir: certo dia eu vi que você nunca me amaria.
Esse dia nunca se deu, mas eu sabia, e você nunca me amou e nem nunca amaria. Obviamente, só vim a percebê-lo muito depois desse dia - e nunca houve negação da minha parte, pois só se ama quando se é honesto para todas as mentiras.
Assim como eu conduzirei, não subterraneamente, não por detrás do que eu digo, mas do que se diz de fato com o corpo, com as expectativas, com o que não se sente, mas se sabe, mas se escuta no nada do vento, naquele gosto, naquela sensação esquizofrênica de invasão dos aquilos anônimos de morte que sempre assombram a humanidade, é assim que se faz amor, obrigatoriamente no silêncio! Num silêncio que só faz som quando quebra e deságua e caí terrível e catastrófe, tanto gozo quanto choro, catarse.
Não é então que a arte se faça, mas é só aí que se deixa de vivê-la, que ela termina de se pintar com você mesmo e você pode observá-la e sentí-la. Até lá, só há silêncio

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Quimera e o fim

Sempre ao meu lado, meu único perene cultivo na mais outonal das primaveras que se fazem nas folhas passadas de minha vida, é a arte que me sustenta e me dá nome. Quando depois de tanto tempo, de tantos calos que me fiz, de tantos poros que me abri, de tantas sensações que me contorcem em todas as metáforas possíveis e me levam para o mais da felicidade plena, de tantos nortes e de tantas bússolas partidas em ouro e fogo, foi que eu pude dizer chega? Ah, porque agora se fez a última música e a última peça para essa alma que se reflete no preto e branco das páginas de qualquer livro ruim, de qualquer memória boa e forte, que se dá para a sinceridade declarada das grandes coisas do mundo - e nesse mundo falo do além da morte que não faz sentido estipular fora da própria vida - e que vive sem nenhuma necessidade de verdade e de desejos, que vive tão bem quanto respira e pinta a cada passo que dá e a cada farpa que lasca do coração, cuja casca se apodrece nessa mais atual estação - é você então, a luz dos astros e sua distância que condenam o meu tão-certo errar? Mas qual o deleite e para quem? Pois sim, o é se há a arte!
Eu parto agora para o meu sempre anunciado e cálido nunca-mais, para o fim das prescrições, para o ocaso de uma moral! Porque eu sou pequeno e acabo aqui mesmo, onde dá nos olhos e onde o vento me entra pela boca e tem um gosto todo especial, eu que me queimo na luz do Sol. Eu aprendi uma vergonha versada, um ardil mais sutil, o vértice do agridoce e múltiplo resplandecer na artificialidade, eu aprendi a andar de noite na rua.
Filho do meu século, da minha cidade, do meu sexo, do meu intelecto - mas não da minha paixão! Eis que dela eu já me despedi, por mais que eu lhe volte os olhos durante o dia - é preciso ainda crer no tempo para se achar que há algo como uma volta depois dessa ruptura, mas por ora isso basta. É noite em um meridiano invisível no mar azul e só e quem pode se enternecer com a sinfonia cheia dos ventos nas rochas encarnadas das chapadas? Ora, eu vivo na luz roubada da Lua, emprestada, de favor; porque eu sou um miserável declarado e dissipo nessas horas, no meu mais agudo desprezo a mim, a força que eu imperei sob o meu corpo e roubo dos filhos meus a loucura que tentam as mãos anônimas dos dias me subtrair, só porque não sou mais criança.
Mas o que são esses motivos, esses pequenos e curtos temas e fugas, para quem contempla a presa no se apossar do amor e adivinha os nomes primeiros de todas as cópulas? Dissolvo a pergunta na aurora, e creio chegar a resposta nos raios que se me despontam no horizonte, por isso eu durmo e faço arte pelas manhãs. Para esquecer que há algo mais ao qual não devo nenhuma gratidão, nenhum alívio e que me faz parte de um mistério, pois é o pecado meu, aquele de erguer na arte os pilares de um pudor e ritual que me lançam às cavernas. E aqui é tão úmido e sem conforto! que eu acho que não quero me mexer por algum tempo - será que só eu, às vezes, não consegue achar mais paz do que quando na boa consciência de que está no lugar do errado, e com a cabeça deitada num chão pedregoso - eu, que às vezes, gosto de subir até as nuvens e tecer outras para ninguém, como se esperasse um balonista para me sequestrar, a sereia e a viúva-negra

domingo, 14 de agosto de 2011

Nômade

São mentiras tão pequenas e sinceras, as que eu preciso
todos os dias, porque eu sempre saio de casa para
nunca mais voltar
que se faz o caso, de ser aquilo que me cerca,
faces recicladas, e futuros remoídos
esperanças carcomidas e celas áridas
pois, se sucumbir nos altares da promessa mais dura
é mais que um preço, mais que uma dádiva
é um desejo e nada mais
e ser nômade é não falar de si mesmo quando no mais oblíquo da razão
e ser final e sóbrio como quem não bebe o sangue da fonte há mais de muitas vidas
e pontuar as frases e orações como quem toca a música
que todos os solitários escutam quando rumorejam pelas ruas ao luar
ah, mas quem tem a graça para se ausentar do palco no melhor das festas?
e de deixar na própria boca, a bendita saliva
a umidade santificada pelo silêncio das grandes glórias do tempo
e vulpino, rapinar de si o fim sem fanfarra
que dá paz aos homens e às coisas que se dão nomes e amores
como quem pára e olha para o mundo, de vez em quando
e se apaixona sorrateiramente e mesquinho
e esquece fácil, oh, tão fácil...

the Boho dance

E seu eu quiser mais e justamente isso que eu terei
das papoulas, inalo o brio de um desejo, misto castigo
e casto, imolo meios orgulhos e sinas, pois agora sei
ao quanto uma vida de rumores e segredos me instigo
a operar em minha face - oh, tão cirúrgico agora -
a máscara mais torta em lágrimas e rugas salgadas
e rir e chorar, enquanto aspiro ao mais divino profetizar
tudo isso na comodidade profusa e promíscua
ao tomar meu café e rememorar saudoso o áureo roçar
da glória em mãos, que tão pedestre se esvai e recua -
e é nas calçadas sujas, nas pedrinhas portuguesas
que o dia de antes caí tão certo sobre meus ombros
quanto o Éden sobre os meus doces e mudos mundos
- Sim, eu me lembro tão bem de tudo. Tão bem que às vezes sinto que tudo pode passar e só eu que fico mesmo. Ah, mas aí... é aí que está a mágica.

domingo, 7 de agosto de 2011

Jamais provarei da sagrada carne. É no mais banal dos dias que se passam lentos que as grandes realizações se fazem, mesmo quando eu não as percebo. Como em sonhos, eu as noto muito depois e costuro o tempo que me faz cognoscente do imediato e do mais místico dos quadros: o agora me toma e eu me canto em fúria, impiedoso dos meus passados e com sede de mais.
Às vezes, na rua, eu vislumbro Tadzio entre os olhares que me partem ao meio. A beleza tem todo um rigor em sua indiferença, que alguém mais nobre do que eu chamaria isso de moral, ah, mas isso não é meu de todo. Vejo nos homens que passam e nas mulheres quase diáfanas, aquela beleza eterna e infinda em sua presença, como se o mundo todo se iluminasse ao redor de quem por eles se apaixona, reduzindo o seduzido em trevas, relegando seu peito ao abissal...

domingo, 31 de julho de 2011

Inferno Astral

Será que eu realmente posso estudar a minha dor? Há nisso que me desestabiliza tanto um ponto de apoio no qual eu possa ensaiar minha campanha contra ela, por mais mal-fadada que tal empresa seria?
Ah, realmente não quero me perguntar isso. Pois, sei muito bem que não conseguiria. Deito-me todas as noites com meus fantasmas; vagaria pelos campos e escombros da escaramuça e me refestelaria no meu infortúnio, como tantas outras vezes já fiz. Seria ingênuo pensar que agora, pela profundidade da ferida, eu seria capaz de algo diferente.
Como se eu pudesse me surpreender com tão pouco, como se eu não esperasse por isso. É bem patético que anuncio meu alinhamento para com os mitos que condenam a esperança como o grande Mal, esteticamente pelo menos. Assistirei com um certo prazer de vingança minha derrocada, como se chamasse minhas asas de cera pelo nome de Pandora, enquanto reservaria secreto nomes mais baixos e meus para os meus amores que me atingem com gravidade - com sorte, não serei vulgar ou Outro, não ambiciono ser belo em mim.
Cada paixão é um conceito e uma sentença. Em cada uma se encerram dores muitas e um primeiro motor para todas as encarnações de mim que se seguem ao flagelo fatal. Uma peste quimérica, legião se esconde nas minhas dobras e poros mais ermos e imos, sou promiscuamente muitos e quero ser esmagado pelos pés do mundo - no estupor de quem se fere em agulhas e águas, me tomo como que fora do espaço, esse grande limitador de memórias forjadas - eu, a barata última e sua exo-alma translúcida e insígne dos escalões mais baixos dos seres das sendas ocultas em torpe seda, o grão-símbolo do que deve ser imolado à aurora. Em suma, sou o supérfluo, o luxo que não se sustenta além do capricho inconsequente.
Em tempo, pois ele corre fora do espaço inclemente, minhas vistas se dão para o ar sargaço e eu estou preso em minha espiral descendente, e cada suspiro é uma lufada de vigor que é bombeada dos meus pulmões até o vazio que me cerca. Para quê? Para nada, para cumprir o ritual e nada mais. Eu caio e dissolve a minha boca as gotas de felicidade que regurgito nauseado pelo meu giro.
Ressoo oco no chão, ou no Fim - não sei onde estou. Mas desde então já se passou muito tempo, agora estou ainda mais perdido em mim mesmo, apesar de meus pés enganarem os que me passam, como se fingissem um destino, um propósito, mesmo que eu não faça nada.
Cultivo esse fiapo de paz que meu tormento me deu, e atualizo esse nada em todas as minhas ações, como quem tece uma mortalha para um cadáver que tem o seu próprio rosto, mas que sabe que não deixa de continuar em uma outra parte, que adivinha a vida, não por vivê-la, mas por farejá-la, mesmo que ora como uma presa, ora como um predador, e quando, para meu delírio onírico, como um pequeno estilete a refratá-la.
Então é isso mesmo. Fico aqui, na minha nuvem, tecendo brumas e ocultando estrelas, pois de onde eu estou repousando, o brilho das estrelas as emoldura como um halo; eu vejo anjos que me embalam e me fazem pensar na Inocência, como quem se recorda de uma grande alucinação e a confunde com a primeira infância - que tolice, pois todos éramos tão pecadores que crescíamos e acreditávamos em Deus, com a malícia de quem o chama pelos nomes mais sujos, dentre eles o do Conhecimento e o do Futuro, e dessa cópula profana, divinávamos os mais terríveis demônios.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Minha ideia de "dia na praia"

Escavo na areia, invisível a uma multidão que me passa e me ignora ativamente - não sabem me dar lugar em suas belas imagens, então me tornam anônimo aos seus olhos, paisagem - o que é tanto melhor para mim, pois esse é um dos refúgios mais fortuitos para os atos sujos.
Minhas unhas mal-cuidadas entram e saem da areia com inesperada destreza, como se soubessem que se trata de uma situação de grau delicado, cuja sustentação exige uma habilidade que dispenso apenas nas horas mais diáfanas. Penso eu que encontrarei alguma coisa - nunca foi meu objetivo - ou que acharei uma porta, uma porta  deitada, oculta nas camadas mais superficiais da praia - como se toda minha perspectiva fosse produto de um complexo jogo de espelhos, cujo um dos componentes se vê estilhaçado em mil pedaços e daí se faz o caos das vistas, a cegueira da promiscuidade visual - só para mim, que me abriria um reino de eleitos marcados tal como eu - abstração divertida não menos quimérica - ou que ficarei doces horas sob o Sol, como quem se dá a um Deus, num sacrilégio de imolação temporal.
Não olho para nada a não ser minhas mãos irritadas pelo atrito dos minúsculos e milhares grãos, correlegionários daquilo que é pequeno e muito, a legião do inanimado, minha nêmesis primeira, pois tenho em mim a grande suspeita - no crepúsculo da existência, há o limite da razão e do possível: nesse após-mundo, há todo o mal do inesperado e tudo é Terrível, isto é, é por excelência de ser, extrapolando as noções de modalidade; falo de atos gratuitos por falta de um termo melhor - e seriam esses os primeiros arautos da morte de um sentido qualquer, sua mensagem é o fim da humanidade de maneira silenciosa, sem que ela o perceba e subsista, o retorno ao Éden.
Menos profecia do que medo infantil, me faço criança ao levantar da praia ao cair do Sol, com um semblante de derrota, como se a alegria tivesse me acompanhado até então. É só mais um dia, ou menos um se assim soar melhor. Mantive as mãos ocupadas e as vistas nubladas e os ouvidos pesados.
Não vi ninguém, mas os escutei, em toda a sua compaixão para com uma bela vista, alguns se detinham de suas espirais de querelas infindáveis consigo mesmos para apreciarem o mar, já outros eram mais insensíveis a isso, mas talvez contemplassem uma beleza muito grande para mim, que aprecio naturalmente as mais óbvias, meu único segredo é na mesquinharia - sei daquilo que é pequeno e acaba na palma de uma mão e é mais insignificante que todo o resto; sei também o alívio de sentir essa nulidade em mãos, como a relíquia de um santuário, ou melhor como uma coisa preciosa e clandestina, pública, mas só para os meus olhos.
Nenhum deles tinha, porém, pudor e aqui confesso meu resquício de moralidade. Tenho no pudor o mirante de toda arte, o recato e a cerimônia para aquilo que nos escapa o tato dos sentidos todos. É por ele que posso me escavar uma fossa na areia e de lá avistar as esfinges com seus enigmas, e as plumas das bestas aladas a errar pelos céus, eu saio de cena e me reconheço um espectador, que por mais engajado e ativo no seu lugar, sabe-o justamente fora de cena - é claro, que isso só faz sentido, se tenho no Belo, a alteridade ao Eu, e bem, isso é muito longo e estou precisando de um banho.
Pego esse dia inútil em minhas mãos e o jogo fora, cavei, afinal, na areia, uma poço para o nunca mais. Divirto-me olhando para o sem-fim com certa segurança e faço disso um depositário de misérias, de humanidades por mim renegadas. Sou bem pragmático e condicionado - extraio da vida tudo que ela pode me dar pelos preços mais baixos - afinal, sou pobre de espírito, se já não o perceberam

Monstro

Chega um momento em que o verso não me basta. É hora do sujo, é hora minha. 
Nessas horas de desespero é que eu me lembro dos grandes medos, e atravesso seu palco com uma coragem fingida que todos reconhecem como tal, mas não mo dizem. É tudo parte do espetáculo. Sou agora, mesmo canhestro, um equilibrista, e sob minha tênue linha, jazem setes reinos hindus de céu e infernos. Sobre minha cabeça, tudo aquilo de que eu sei menos ainda e cuja vista me ofusca os lábios, que se fazem pétreos e opacos.
Pode o nômade carregar sua vida com toda a sua dor, posso realmente dar-me com a leveza renovada de uma primavera aos mesmo ritos que por essas sendas malditas me encaminharam? Eu que nem tenho o conforto do divino culpar? Que sequer posso o dedo torto, em riste, apontar?
Ah, mas eu devo. E que cada passo seja uma maldição a essa história, que eu morra essa criança tola e expectante em todas as encarnações de minha ímpar existência, que eu me torne, enfim, o monstro que sempre vislumbrei nos espelhos, cuja iniquidade, o sardônico pensar refletia o brilho nas ilhas ermas da noite, que eu adentrava modesto, um visitante.
Se Monstro enfim, eu me vou para à noite e sei o seu cheiro, sinto suas cores no vento frio, que corta da pele, as doces e pueris esperanças. É a noite a hora da inclemência, pois é o seu vento frio que revela aos homens o pequeno e torpe mal que lhe são suas esperanças, um veneno tosco exposto à luz negra, e que dá então, aos seus vassalos a chance de  morrer em glórias dos caminhos inacabados, eles que singram distâncias enquanto sangram na cama, unidos na insígne dor de um desamor antigo e primeiro, cujas manifestações são as máculas de suas frontes atormentadas e retorcidas - sim, é uma batalha pela dignidade mais básica de um andarilho; uma luta sem glória que não a própria de se fazer anônimo à dor, invisível ao amor e escapar de toda a metafísica.
Então, é ao luar que o Monstro agora se mostra, sem seus dentes, sem suas garras. Traz em si apenas, um olhar cego que carrego com quieta dignidade, sem valores, sem moeda que não a própria escaramuça na pantomima privada das pequenas emoções que vexam o véu singelo da mocidade casta em suas promiscuidades.
- Encerro aqui, nesse lugar que faço sagrado, as grutas mais ermas do meu ser. Que repouse aqui, as minhas chamas mais brandas e ternas e tenha eu, a gentileza de não as perturbar mais. Ganho a noite sem esperar pela minha aurora.
É com alívio que me deixo e me torno aquela parte mais revolta do vento, que se faz na calada das horas e insufla o vôo da cinza dos momentos. Sem perdão, sem violência, apenas monstro, apenas isso que é, e aparece sempre faminto e esgarçado em suas forças, aborto da vontade e do amor-próprio, e que se olha com a grata surpresa de quem encontra um pictórico estranho e adivinha no cheiro de chuva que vem pelo ar, que nunca mais o verá

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Desprezível Amor

Desprezível amor, que me corrompe a retina
e me esfacela a íris em pilares cortados de rubra dor
que faz do meu frio e insônia, os únicos frutos de nossa
efêmera cópula, seu crápula, amante ingrato

Peço perdão por minha brusquidão
e clemência por meu ridículo,
ah mas agora, que estou livre
eu vou para o meu primeiro fim

Desprezível amor, sem você, não há olor
mais doce do que a de uma noite virgem
a me encobrir nos seus sortilégios antigos
e me fazer novo, parir em prantos do pranto

Besta pagã, eu me divino das cinzas
e me desenho nas achas da fogueira
em cujo redor outrora dançava
Devo ser, doravante, nômade de mim mesmo

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Cruzar aquelas vielas escuras no cerne da solidão era uma tarefa árdua e arriscada - mas como recompensava bem! Cada sombra era uma ameaça e minha miopia sempre soube tirar o melhor dos borrões que passam a me cercar - tudo é fantástico e perigoso, monstros e arlequins retorcidos por minha cega teimosia de não usar óculos.
Eu mudava de calçadas, eu apressava os passos e elegia heróis no cair da chuva. Me aproximava e os usava de escudo contra os que tomava pelos vilões. Sem bem ou mal, os heróis eram aqueles que eu via melhor e andavam no mesmo sentido que o meu, só que a frente. Inversamente, eram os vilões aqueles cujos borrões eram negros e retorcidos a princípio e seguiam para o embate comigo. Era um prazer baixo medievalizar minhas madrugadas em justas de cavaleiros, mas esse era um dom só meu - feiticeiro e donzela, o poder e o ego - e era tudo tão lindo sobre aquelas ruas olorosas e amiúde povoada de seres ébrios e caricatos, os quais, para o meu deleite ocasional, interagiam comigo espirituosamente, quando num dia perfeito, uma velha mendiga me confundiria com uma menina, o que comoveu a alegria geral de minha trupe.
Era bom andar com grupos pequenos, com pequenas diferenças entre si, um degradé que não deixa de ser um tanto monocromático. Enquanto alguns viam nesse humor uma afetação, as mais elevadas riam dos risos entre os risos; do riso da mendiga para mim, do meu riso para ela que na verdade era para todos, e ainda o riso que a plateia dispensava ao ator pro-eficiente, que cumpria fatal as deixas que a noite de espetáculos lhe reservava. Melinda era baixa e voluptuosa, mas era um primor técnico rir com ela do mundo e de suas criaturas, caprichosas crias do acaso e da miséria inflacionada.
Mas agora, eu estava sozinho e, de fato, havia perigo naqueles caminhos. Meu fim seria, porém, outro dia, constatei eu indiferente ao chegar nas artérias mais congestionadas daquela noite e ver gente em cada perspectiva possível. Como cresciam aberrantes aos meus olhos, eu que até uma hora atrás estava a me rir com elas e dançar suas músicas ruins e seus amores furtivos para a alegria de todos perante a comunhão máxima das vidas que não as suas próprias.
Tal qual outrora os grandes banquetes precediam os dias de rigor e fome, o inverno que se anunciava a cada novo dia nas cidades de luz e lixo era uma morte anônima e cifrada na privacidade pequena de cada um desses comensais que agora viviam tudo aquilo que julgavam ser excessivo e supérfluo - como eram moralistas por assim crerem ser aquele trista e comedida amostra de arroubos cômicos e furtados algo digno de punições maiores do que uma ressaca.
De qualquer forma, eu me sentia seguro por estar no meio deles. Porém, não ando sozinho de noite para me sentir seguro, e se é o caso, o melhor é eu voltar para casa.
Mas eu me detenho e dou voltas nas ruas movimentadas, driblando ostensivamente os pequeninos ladrões, e languidamente pousando os olhos sobre aqueles mais felizes, como se fosse eu quem pedisse as esmolas de uma felicidade rasa e de graça, que se destinava a uns felizes eleitos de divindades menores e mais pródigas - eu que rezava ao Terrível, aquele quem desfaz os absolutos e oblitera a verdade toda na torrente de si próprio - enquanto procurava por uma pessoa em particular. Estava escuro e nessas horas que eu cria ingenuamente que era mais fácil de achar aqueles que reluziam ao meu olhar - ah, como posso ainda ser doce na vulgaridade! Estimulo perverso minha coqueteria.
Levantava os olhos expectantes, como se levasse à luz ao caminho do tesouro, mas para nada nem ninguém. Mais cedo ou mais tarde, eu me daria conta futilidade dessa empresa e me subtrairia dessa noite. Minhas dores levariam meus pés para a casa e de lá, eu iria até o meu nunca mais.

domingo, 24 de julho de 2011

Eu estava no terraço do Bastião, meio perdido no meio das pessoas. Sim, meus ecos são cacofônicos por excelência e a excelência é o nome para a inércia quando ela é benquista e assumida, ou assim me rezam os evangelhos apócrifos aos quais me dedico a escrever com as palavras que roubo nessas noites mesquinhas de prazeres pequenos.
Uma certa soberba também me acossou enquanto me dirigia para um dos vértices do terraço, muito bem gradeado diga-se passagem. O Bastião era baixo, mas sou covarde, e seus quatro andares de cinza e promiscuidade adolescente me assustam - morrer lá seria antes por mal-gosto do que por fatalidade - além disso, já estava muito tarde para me fiar tão somente no meu equilíbrio.
Era um ritual que já não me trazia mais grandes revelações, a não ser a da obviedade disso tudo. Sim, a questão da obviedade que já me faz tão clara e intuitiva mas é obscura para você, meu caro Outro.
Antes, me era requerida toda uma bravura particular para desbravar as sendas daqueles que viriam para preencher as minhas. Um blefe, um desafio descarado e um orgulho inegável pelas recusas que construíram todo um ego artificial, um rosto por cima da máscara, que hoje é mais uma das várias faces gorgôneas e divertidas que tenho para combinar com meu guarda-roupa sensato e sensual. Me forjei na brasa dos toques alheios, moldado por mãos que não as minhas, mas sempre dirigidas pelo meu projeto maior e secreto: o silêncio por si mesmo, por excelência, vício da preguiça.
Enfastiado das minhas próprias surpresas, desses exercícios de gêneros, verdadeiras punhetas criativas, eu me abri - é tão bom quando as palavras são idôneas aos fenômenos que devem expressar - ao alheio e apreciei os resultados, tanto pelo apelo estético que da minha estoicidade provinha quanto pela promiscuidade ao me relegar aos planos mais rasteiros das relações, porque eu nunca fui tão ingênuo quanto eu deveria, como se eu estivesse uma oitava acima da que eu deveria estar devido a um falsete, um truque. Um truque dentro de um truque como se alguém além do meu Outro pudesse apreciá-lo devidamente. Mas também nunca me apresentei para as multidões. Sempre fui um artista de pequenos espaços e atmosferas espessas, os discretos e os arruinados me entendem melhor do que ninguém.
Enfim, era um jogo sangrento e sujo e eu adorava, porque no mais último era sempre eu contra eu - não tinha como eu perder então - mas agora, se tornou repetitivo, mas o que fazer no lugar disso?
Em outros tempos, essa descoberta do mágico como óbvio, teria me pesado mais do que meus doces de domingo. Mas agora eu era um pouco mais forte e cretino, sabia como escapar.
Ainda assim, era com um genuíno pesar e voyeurismo que eu me forçava a me imaginar desesperado e me jogando daquele triste prédio virulento. Sou romântico às vezes, e sei, portanto, extrair beleza da diafaneidade da pele inerte que se estenderia sobre as pedras portuguesas que restam na calçada.
Gosto de pensar que eu jazeria com o pescoço esticado e minha veia mais saliente se externaria trágica na minha palidez mórbida, reluzindo em acordo com meus olhos vazios. Meus cabelos revoltos pela última vez na curva de seus cachos e meu tronco alongado e deformado pela queda. Apenas um certo pudor conferiria beleza à cena - uma reverência de reconhecer o dano e a tragédia, como ver um quadro com cores das quais não se gosta, mas que não impedem o apreço da obra. Gosto mais ainda me me crer como alguém capaz de tais juízos, a morte é o de menos.
Enfim, no aguardo de novas pessoas com as quais me exercer na minha gloriosa condição de belo ser da noite, eu meditava arrogante sobre minhas paixões e meus labirintos. Como eu me diminuía nesses ecos, reconhecia ao menos que certos dias eu dava performances dignas, mas não mais me bastava aqueles trejeitos vocais e os abraços de entrega. A chama do ritual oscilava cada vez mais, fazia-se notar a ausência de uma nova vela a sustentar a velha chama, e não estava lá definitivamente.
Minhas meninas estavam felizes e bêbadas, deixei-as lá por capricho. Era um sinal claro de poder sair sozinho e ganhar o escuro das ruas só para si. Foi com certa tristeza e enfado que me percebi como esse misantropo envelhecido pelos transportes nas próprias linhas do rosto - novamente, é muita masturbação e eu já estava muito temperado pelos artifícios mais segundos para me contentar com isso.
Parto com meus deuses e deixo as luzes do Bastião para trás. A manhã se anuncia apenas nos meus olhos que já vem as cortinas e os versos que reservo para elas na minha lassidão - não sei o que lassidão significa, mas o meu hoje já é um ontem no início do meu amanhã; está muito tarde e a verdade também dorme de madrugada no ônibus junto comigo - posso tudo no meu sono acordado, e me permito o ócio e a inatividade. Dou os passos finais dessa jornada fragilizado pelo frio e tocado pelas gotas torrenciais de um dia que começara depois de algumas reflexões - falo do tempo meu, secreto e torto, que muitas vezes pára e retoma veredas até então abandonadas como lembranças. Viva à memória de mim e dos meus muitos amores anônimos - tenho uma mordida no pescoço e durmo fácil, sou uma putinha de filme hipster auto-referente - e viva à cultura

sábado, 23 de julho de 2011

Água-furtada

A cada dia que eu me fio
numa glória passada
e me entorpeço ao ponto
de não mais sentir medo
ao me relegar os pequenos delitos,
é uma eternidade que eu me deixo
ao pó a se coagular maciço nos poros
e que eu passo a me adivinhar com
a precisão de quem deseja nada mais
do que jamais vir a poder acertar
Mas, se agora eu digo sim
e estendo os passos na malva bruma,
não para o sol ou para o átrio
a resposta ou o indolor
e me dispo daquilo que até então
me fora o mais essencial e divino
Ah, eu sei que posso e caio,
por fim, atendendo ao chamado
maturo em ser da noite e o meu caminho
é não seguir e ir embora,
mesmo quando no meio dos tempos
eu anseio a sua voz e grito
o seu nome mais meu no oco da boca fechada
e ressoa no detrás dos dentes
um luxo que eu não mais me furto
na esperança de um maior

domingo, 17 de julho de 2011

Musicalidade

Depois de muitos anos de tanto escutar suas músicas,
seus planos e pianos, seus pios insanos, o canto inano
quando cessa a orquestria, ele continua a cadência
e seu corpo vira uma sucessão de notas agudas e graves
e sofrer é um solfejo impecável de ser atacado pelo alheio
de ser de todos e nunca mais seu próprio instrumento
mas num gracejo final, ele se sublima num penetrante falsete
cuja leveza e verticalidade, lhe impelem num glissando
Ele é agora imortal ninfa, mais do que Eco, e se faz
só para aqueles cuja alegria se escapa como doces
e melancólicos fantasmas que a luz do Sol faria as
antigas peles queimarem hereges à luz acorde
que urde e impera toda a marcha militar da vida

sábado, 16 de julho de 2011

Guerra à Felicidade

Faz pouco tempo que eu declarei
guerra à felicidade
e é em elogio à loucura
que me deito de noite
sempre só e sei que me tenho todo
para qualquer dor que se abater
sobre o amor que tenho 
ao andar de madrugada pelas ruas
e me saber um, onde não há mais números
e adivinhar em cada olhar que
se desvencilha do meu
um eco reverso, em preto e branco
daquilo que me faz partir todos os dias
e ainda assim ter no peito a cavidade
que anseio pulsar eterna no seu vazio

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Eva

Eva, e é a primeira evocação
a saudade na carne dos lábios meus
e à sombra da mãe, o reflexo da esperança
que se racha ao comando de sua voz
e por onde todo o mal chega a mim
E eu amo agora, enfim livre
posso não ser mais canhestro ao pecar
e me fartar das pequenas liberdades
e das grandes dores que fazem
dos homens, crianças doces e terríveis

Demian

Falo o teu nome em sonhos
pois desde muito estás comigo
e eu tão sem o teu acesso, cego
Só para que agora todas as minhas
águas convirjam  às sendas do que
sou mesmo quando não em mim
Sussurro louco e fausto pois
sou o primeiro dos meus homens
e fui condenado ao segredo
Mas o tempo do silêncio já passou
e se posso me fiar na memória
então espelham os sons, o nome
e meu amor dorme, enquanto
rezo, desde o meu sexo, a Abraxas

domingo, 10 de julho de 2011

Cinema

O technicolor ainda não chegou ao pensamento
e é quase injusto ter que sentir de modo tão analógico
que quando eu me vejo sozinho no cinema escuro
eu parto para um além no qual eu não seja refém
de um mundo em branco e preto,
enfim, eu me dou outros nomes para as brumas
e rio e choro porque é como se eu me afogasse em águas

Mesmo os filmes bons - esses são aqueles que
eu não consigo esperar que acabem logo
Tal me é a urgência de senti-los
antes que feneçam nas palavras mais promíscuas
Há de se convir que em algum ponto,
a arte deva se separar dos prazeres do sexo
do contrário, seriam eles dois abertos em seus segredos
para os mesquinhos e os incapazes,
fazendo das conquistas, dádivas divinas
E se Deus fosse bom, ele nunca teria feito o Belo,
isto é, o pecado e seus muitos filhos

Estética da gratidão

A primeira lágrima que cai
é aquela que se verte pelo fatal
pelo propício pretexto factual

Ah, mas se o ritual se faz
então a torrente terrível jaz

Não consigo ser mais do que eu,
eu choro então por mim
e isso me faz tão feliz
porque, enfim, grato
eu não me encontro mais

E tudo vira uma música oportuna
no burburinho confuso de uma cidade
pequena demais para o ego partido
de uma só pessoa

sábado, 2 de julho de 2011

Da Satisfação

Nunca me deixe,
sem que eu te beije
sem que lhe toque
sem que eu lhe seja todo
quando eu cravo as unhas
na sua nuca
e meus lábios roçam no seu ouvido
e lhe dito a sentença
Nunca mais,
e eu já não deixo um rastro
e isso será só seu para lhe pesar no peito,
enquanto eu sigo a minha deixa

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Needles & Pins (Acupuntura)

Cada agulha, eu rio de nervoso.
Atado no meu lugar, na minha postura
a ortopedia do meu bem-estar assim me dita
e cada pequeno furo no poro
cada pequena invasão de mim
eu rio e rio ainda mais
não há porquê, não é tortura
mas é cada violência a que me submeto
para me poder sentir são nesse mundo louco

terça-feira, 28 de junho de 2011

Aftermath dos dias 23 e 24 de maio de 2010

É que, sabe, eu
não tenho muito pra oferecer
e espero muito menos
Mas ainda assim eu queria
um silêncio de mim
que eu soasse no todo
do oco do meu corpo
e só a estática.

Como naquelas noites terríveis
quando se chega em casa de madrugada
e todas as janelas estão fechadas
e a casa estufa um som tão violento
que eu invejo pela fatalidade com a qual se faz ouvir

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Amor

Pisa-me verme e não me verás
brilhar nas cores proibidas do ocaso

Ata-me insano e não me terás
a desvendar a bruxa na bruma

Cala-me vela e não me arderei
mais em sopros de súplica

Sangra-me como em rito porém
e me amas como quem despreza
e me terás todo como o amor
se dá torto e a quem não merece

Acústica

No fim, foi tudo um delírio
de tão má literatura,
que sequer espero o amor acabar.

Sou pequeno e acabo bem aqui,
onde a deixa me impele
ao meu bom nunca mais.

E se alguém me dissesse
dos caminhos e das vidas,
eu diria não e sentiria o pescoço em brasas

Algo extraviado na garganta,
só mais um amor de compensado
oco para eu me perder no eco

terça-feira, 21 de junho de 2011

Insider

E agora você me olha
e eu sou aquele que tudo pode
que pode passar, que pode se esvair em dias
e que comigo só você continua e eu fico
e eu nunca escolhi isso,
mas esse detalhe é só para mim
comos os trapos dos quais faço nesgas redes
e deito a cabeça sobre,
como se pudesse esperar um sonho bom
no qual você gostaria de estar comigo
não importando o quanto isso pudesse nos doer
E daí, juntos até o nunca mais.

domingo, 12 de junho de 2011

Estava escuro e era ela sozinha naquele canto privilegiado, escolhido palco de seu delírio, cuja vista para as paredes nuas seria capaz de desvanecer em ondas suas pequenas loucuras. Estava assustada e seus olhos eram grandes como os de um animal sem mais do que um lugar num esquema maior do que todos as bestas sobre a terra, brilhavam orbes débeis e claras, clarabóias do claustro ermo e úmido.
Ria um pouco para si, como se o tempo fosse por isso suspenso e julgasse tudo por um absoluto em lâmina fria e seca. Nada era mais real do que uma mentira, nada era mais real que as pequenas coisas que ninguém nota com ela.
Aquele pavor todo, um horror que lhe imobilizava pela garganta, em garras recurvas, lhe dizia no tato brusco que aquela podia ser a hora que toda a razão abandovana os homens à sua própria sorte. Agora, as regras seriam outras e ninguem poderia entendê-las. Estariam todos sós.
Das sombras tudo podia vir. O quarto era pequeno, bem mobiliado, leve. Ninguém diria que algo tão terrível pudesse ser comportado por aquele quarto. Qualquer coisa mais do que um sofá lá seria rídiculo e não poderia respirar se ainda vivesse, era um quarto de atmosfera plástica e agradável, convidando o perigoso e o cruel para fora de maneira exemplar. Lá só se poderia morrer de placidão, nada mais faria sentido a não ser essa tragédia. Mas agora, ela já não tinha tanta certeza disso.
Era como comprar sapatos quando criança com seus pais. Os corredores tinham cheiro de qualquer coisa que não as que os olhos viam, mas não era nada distinto. As comidas, as pessoas, as plantas e os bancos, tudo isso era paisagem, tudo que parecia respirar e exalar eram as roupas e, particularmente, os sapatos.
As lojas de sapato, ricas no couro étero a aspergir docemente as narinas, subiam pelos dutos quase que sólidos, e ela, tão inocente, achava que tocar nisso era possível, mas algo como um código tácito sob o qual ela jurou observância antes de entrar no shopping a impedia de o fazê-lo. Não queria que ninguém olhasse para ela como olhavam para as roupas e os sapatos, queria não ser olhada como todas as outras pessoas que não estavam tirando dinheiro de suas carteiras.
Estar agora no quarto escuro, sentir que poeira podia se acumular sobre seus ombros como sobre os móveis a fez pensar que vivia após o mundo que a acolhera tão calorosamente indiferente até então. Parecia que só agora que vivia algo como um "eu", e experimentava o gosto de tudo, e era possível provar o doce como um toque ou o cheiro de mofo como uma frequência especial. Era o fim do mundo e nada mais importava, estava livre e morava com dois estranhos, ela mesma e um homem na sala, vendo alguma coisa na televisão - se lhe dissessem que amanhã todos os homens andariam de cavalo entre os carros parados ela acreditaria porque já não mais se importava com qualquer coisa que fosse e a verdade era privilégio daqueles que amavam o mundo como era.
Não mais, ela só era capaz de aceitar do mundo tudo que ele pudesse projetar sobre ela, passivamente. Passiva esquiva ela era inantigível enquanto estivesse parada olhando para aquelas paredes, parada naquele canto.
Estóica, ela persistia, desafiando o mundo todo que vem junto antes e depois dela. Ninguém poderia lhe atribuir um sentido ou razão para aquilo, só por estar parada ela se sentia tão fantástica quanto um unicórnio, quanto um réptil em seu couro pantanoso. Ela por dentro, sem externar nada, estava terrível - não queria derramar a glória que se agitava no seu imo, com risco de que tudo se acabasse ao ser desvelado o mistério em uma forma tão pedestre quanto a de uma loucura privada e conjugal à meia noite; não, ela queria mais, queria em cada ponta de unha a arranhar a parede ser sádica, e não provar nada com isso, e seguir eternamente desapegada de um propósito a embalá-la, a ensacá-la em algo que não a deixava respirar por sua pele.
Ela, que antes fôra tão patética, tão adequadamente medíocre, com seu cabelo louro e curto e liso, tão plana em sua pele clara, recoberta por uma fina penugem auréa, com um nome simples, quase mnemônico se recitado com o sobrenome do pai, capaz de definí-la geneticamente. Naquele instante porém, ela podia finalmente rir-se dela, adivinhar o sexo jamais plenamente satisfeito a crepitar um esgar sob suas roupas, invisível e indolor, mas sobrepujante ainda assim, e até mesmo rir alto disso tudo, para todo mundo ouvir. Todo mundo agora era o tudo que não ela, por mais que isso fosse óbvio só agora ela podia perceber claramente o que era ser sozinha e mulher e gostou.
Ela ia começar a imaginar que estava olhando por uma janela, como se para deixá-la mais confortável e inspirada para pensar numa paisagem nova e inventada, de sua autoria reconhecida e assumida, quando a porta se abriu e a luz do corredor cortou a fantasia como só uma luz pode cortar o negror das maravilhas que se escondem no além-mundo dos homens que reverenciam o mítico e o desconhecido, isto é, a mágica.
Seu filho se aproximou desajeitado dela, não muito acostumado a escuridão do cômodo. Era uma criança esperta e percebia os vestígios sangrentos do que lá se passava até pouco, mas não o bastante para se sentir responsabilizado por trazer o sentido de volta para lá. Olhou para a sua mãe com uma boca expectante, como se visse um monstro que sempre esteve lá - anos mais tarde, se perguntaria como o pai pôde alguma vez se medir com uma mulher amazônica como aquela, capaz de esmagar tudo com um olhar que se recusava a dar por um certo desprezo e pudor; ele que era tão homem e dado, tão certo e suprimível, e ela que não era muito mais que isso, talvez até menos, mas talvez fosse esse o motivo, a explicação do possível e do crime que daí poderia se seguir - e pediu a janta, ou qualquer coisa. Ninguém escutou ao certo, de tão fixos que estavam em seus papéis de opositores num jogo de vontades ocultas e pulsantes.
Ela olhou para ele, o efeito de sua jornada introspectiva ia se desfazendo lentamente, e o fez com um carinho genuíno e volátil, de graça. Tomou o pela mão e foram para cozinha, olhava-o de cima e percebia seus ombros pequenos, suas pernas finas e o quão fácil aqueles dedos quentes quebravam. Ele já tinha quase sete anos e nessa idade todo o charme da primeira infância estava frágil e as imperfeições futuras já se maturavam; ela pôde perceber como aquele nariz do filho lhe seria um problema, coitado.
Não se deu muito trabalho, abriu um pote de biscoitos, pegou uns quatro e deu pro filho numa cumbuca branca de plástico e colocou um pouco de leite para esquentar no fogão. Está noite ela dormiria apenas depois de se pentear como uma princesa, como uma aristocrata amarga que via em cada madeixa refletida na penteadeira uma pista de felicidade fugidia, está noite e todas as que se seguissem dela, ela seria toda dela mesma, ciente de que ninguém podia amá-la tão bem quanto a estranha que olhava para ela dos dois lados do espelho.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Noite em duas partes

depois pensarei num amor
e depois em outro
e assim eu passo de sonho
em sonho como quem
não quer nada além
do que já tem

um corpo sozinho no leito
e o pulso quente escondido
debaixo de todos os panos
para me descortinar,
como se o mistério fizesse
do deserto, o paraíso

Imperial Hotel

E assim, sem muita conversa eu me deixo
quero rir de mim à uma certa distância
como se eu fosse um estrangeiro de outro tempo
sentado sozinho numa mesa de hotel
tomando seu café-da-manhã
senhor de todo um plano e rotina
que não lhe tolhe em nada
o total destaque de todas
as outras peças da minha vida

Porque a hora que puder abdicar
de me divertir com minhas dores
das minhas fúrias eufóricas
é o momento que eu me torno surdo
ao eco da solidão, e vivo cego
para um mundo vazio de homens
e vasto para o delírio anônimo de um só coração

Escadas

Ninguém entende que quando eu amo
com meus olhos arregalados
ou com a cabeça inclinada para baixo
com meus lábios abertos para o branco do dente
e eu penso numa música ou num verso
eu me volto para tudo que não eu
pois eu tenho dentro de mim
tudo aquilo que morre quando as luzes se apagam
toda vez que eu desço as escadas
e os meus pés estão no ar, sem degraus
e eu penso no quase-fim, todas as manhãs
e é isso que me faz amar forçosamente
que me faz ser uma criança sempre mentirosa
porque no fim das contas, eu não duro mais que um dia

sábado, 4 de junho de 2011

Você(s)

- Eu queria que tocasse "The Last Time I Saw Richard" enquanto almoçávamos hoje. Mas, que você visse a sutileza que lhe toco a cada gesto e não me perguntasse nada. Que talvez você entendesse porque, para mim, ser triste não exclui ser feliz e o quão perto de me desfazer no vento eu estou e só restar de mim um chamado brutal e subentendido nas engrenagens da cidade e das ruas. Mas, então, já não estaríamos mais aqui e nada importaria tanto assim de fato. Sim, lhe falo do futuro nosso. Pode agora ver o quão péssimo eu lhe sou? Diga que não, por favor, mesmo que enfim você saiba que sim. Às vezes eu posso ser tão fraco, mais quase sempre eu quase não existo.

- Já você, tão anônimo e nômade em meu coração, você não teria o meu perdão. Não sentiria jamais o sal da minha absoluta anistia em glórias de ganas e pequenas paixões. Não sentiria, porque eu sempre quis me expor, que me pegassem em flagrante e me despissem de minha divindade e de minha figura, que me rissem ricamente, que minha vergonha lhe dilatasse as veias e esquentasse o seu sangue morno - isso que é o meu desejo, o resto é tão pornográfico, quase Bergman e eu não quero isso pra mim. Então me repudie, me renegue, me humilhe em gélido silenciar que essa é a minha hora mais primeira e sublime e dela eu posso ir para onde eu quiser para nunca mais. Só para que eu agradeça ao nada que me escuta tão sempre eu lhe chamo, e lhe deixe enfim. É só mais um elo na corrente, e não será você, de todos, aquele a quem deverei a honra e a vingança ao partí-la. (De tão fácil que é, até eu posso me ser elusivo)

- E claro que eu lhe deixei pro final, você é o grande arquiteto disso tudo. Você foi meu Deus, meu céu e inferno e tão sem metafísica que até hoje eu me espanto com quantas coisas eu ergui sobre um nada quase negativo e insípido, mas não com o quanto eu amei, se não você, algo que me foi dado que não fazia sentido atribuir senão a você. Porém, me resta pegar os meus pedaços reflexos no chão e partir e ser meu próprio começo, senão para ser meu derradeiro Ícaro. Se há algo que posso lhe creditar com certeza é descoberta do meu direito ao drama e da culpa sem pecado, apenas por prazer.

Odisséia

Quando eu danço, sabe, eu sou só eu
sem nada, sem palavras, sem arte
sou só uma criança que cresceu mais do que devia
como todas as outras, ah
mas você poderia me dizer que eu provei da maçã
que eu sei em cada poro o segredo
ou que eu o adivinho nas bocas ao meu redor
cujo sussurro de desespero é a cadência da música
e que eu sou culpado e cruel, ah
mas então eu diria, ostentando cada vértice
da minha éfige demoníaca, que eu posso
E eu sinto daí todas as quedas e águas
se vertendo sobre a minha cabeça
e, Deus, permita-me acreditá-Lo só agora
para que desse tudo eu faça um sentido
e que ele seja o mais belo de todos,
porque mesmo tão forte quanto,
às vezes, eu sinto poder-me ser
eu ainda preciso fechar os olhos e dormir
e crer que a vida não se acaba num escuro absoluto
como um desmaio num beco sujo e anônimo
mais urbano do que humano

terça-feira, 31 de maio de 2011

Beautiful Child

Talvez um dia, eu me veja sendo um homem
sentado numa poltrona sem
meus livros e minhas palavras
meus amigos e minhas paixões
e eu vire um copo de água sem sede
e todos me achariam belo e triste,
ah, mas longe de todos, em minha poltrona
com os olhos para o imo do meu reino voltados
eu me permitiria um canto bem baixo e discreto
como nunca ninguém se permitiu qualquer coisa
e eu viva ávaro nesse momento,
agarrado a uma promessa que não me soube esquecer
sozinho com meu para-sempre e um eco.

sábado, 21 de maio de 2011

Rascunho

... mas isso agora já fazia tanto tempo. Podia-se esquecer da boca anônima sem grandes dificuldades ou querelas morais.
Por que todos esses movimentos, o peristaltismo compulsório do amor de todas as noites, eram as pétalas da lis símbolo da missão. Missão essa que não o amor, esse amor que dá e se sustenta com tanta leveza, o encaixe idôneo, a premissa sob a qual todos os homens sabem que devem se submeter e se moldar conforme, inescapável promessa, que perpassa a vida, a fé e o sexo. Não esse amor, ele não o procura, pois sabe que a busca é inconsciente e inclemente, tenta portanto não se meter nela para não se atrapalhar mais do que já sabe que faz.
Ele quer a pulsão. Sentir nas mãos ásperas e alheias o vértice da vida, a ameaça última de adivinhar o próprio fim nas linhas das mãos de outros. Quiromante suicida, procura incontinenti seu fim, seu definhar. Quem, dentre todos, pode lhe silenciar por excelência? Quem, capaz de lhe tolher o direito de ser ele mesmo, pode-se tocar nessa noite?

Confissão

Confissão: Sentir, às vezes, quase sempre, é maior do que eu todo. Sobe-me pelas entranhas um esgar, uma ânsia toda branca, diáfana, fluída como seda que não tenho como não chamar de um nada. Então eu me quebro, e me parto para cada pedacinho, inteiro soberano neles e olho para o mundo - sou os olhos da aranha, vitral do ermo entocado começo do mundo, sentenciada e intocada - mas sou mortal e a cera é consumida pela chama da vela, o ritual ainda é falho. Eu volto, recuo onda dos mares sargaços pelas brumas resguardado, talvez só para me acusar de uma certa espiritualidade quando egresso de um ser que não aquele o qual os dias resolvem agir sobre.
É que, às vezes, quase sempre, eu me jogo fora como bilhetes anônimos que eu mandaria para todos que já não me amam mais, mas eventualmente termino por me levantar do canto esquecido e cego do quarto para recolher os pedaços e ir para casa. Não que lá seja melhor.

domingo, 8 de maio de 2011

Capítulo I

Estava conformado ao sentar na mesa. Olhava gratuitamente, sem muita atenção, para os vidros das janelas à sua frente, que dividiam entre si a graça de estarem imediatamente à sua frente.
O outro falava e falava, e realmente não era importante o que era dito. Talvez para ele apenas, mas Abel se achava perdido nas brumas de um prazer pequeno e fortuito. Uma noite de frio, uma noite de amor espontâneo também, e agora estava na cozinha com um homem que não amava por pura incompetência própria.
Ao menos a cozinha era uma daquelas cozinha de família, nas quais você pode atribuir reuniões e conversas a um passado inventado e então atribuído ao cômodo em questão. Podia-se dizer que havia uma realidade aconchegantemente próxima da imaterialidade que é o mundo de cada um, querendo englobá-lo macrofagamente, chamando a subjetividade às armas e à luz.
Abel não queria lutar, seria um movimento por demais expansivo, após uma campanha, que de certo vitoriosa, não menos por isso laboriosa, porém isso não seria o bastante para fazê-lo não lutar contra uma felicidade se eminenciando num horizonte próximo. Não deixaria, não mais, que fizessem da sua vida um horizonte.
Talvez fosse o licor - ainda desconhecia por completo os efeitos do licor em seu corpo, ao menos da ação particular do licor, sem outros componentes de um quadro geral de etílica agregação - ou a cerveja - não, não era a cerveja, por que, francamente, cerveja é a mesma coisa que água para quem ergueu o fígado de fortalezas muitas da mãe de Ruth - ou talvez o amor que lhe era drenado pelas lembranças agora reavivadas - afinal, em menos de um mês, far-se-á um ano desde que tudo começou, desde o compasso do derradeiro fim de uma eternidade estática - aquecendo os tons de sépia em matizes mil, enfim, apelando à estética de uma infância pura e ideal que jamais o tocou, mas o faz, por isso mesmo ansiar pela vida em olhos de caleidoscópios e quimeras feitas por olhares recortados em jogos de espelho, em perspectivas cascateadas e distantes de qualquer esfera mais primeira de percepção.
Partiu-se o momento e ele se tornou sólido e dotado de uma agudez pagã e imperdoável, reduzindo assim o gérmen da felicidade ao resvelo na sua epiderme - como sentia frio se agasalhara precariamente e usava meias. A felicidade se escondera lá, mas não o aquecia - restando então seu corpo ao mundo, dado como o mármore, mas resplandecendo como picta ônix. Figurava-se mais uma vez terrível. Isso, ao seu ver, era uma vitória de um sabor amargado pela fuligem de um tempo que não o dele, mas que descia doce pela gargante e lhe infligia ao falar a urgência de uma morte já consumada, ou seja, era fogo fátuo ao falar pela boca de uma estátua.
Mas o outro ainda falava - não era nenhum problema que falasse de todo, mas a sua necessidade para tanto suscitava em Abel a compaixão que os seres fantásticos e tortos reservavam para aqueles dotados de um ânimo real, forjado pela inércia da olaria dos existentes - e uma leveza tola embriagava Abel, como um ópio que ascendia das grotas mais imas da terra. Enternecia-lhe o fato de o sublime tão ostensivamente lhe tocar naquele momento e não mais ninguém - era inconcebível que alguém partilhasse de sua... felicidade? Não, não era felicidade, pois não sentia nessa glória narcótica o peso inclemente de uma felicidade. Podia ser terrível naquele instante, mas não se mostrara ainda cruel o bastante para ser feliz. Era talvez isso mesmo, uma glória sem nome, sem batismo e por isso mesmo pagã como ele - até que se lembrou do fantasma que esperara desde sempre para começar a assombrá-lo, e cujo prazer sentia sempre na carícia sem dó de ventos quase sargaços.
O fantasma agora lhe revelava, oráculo, que se ninguém podia ser por essa glória aspergido, pelas mãos outras e negras, ela podia se impor ao demais e isso já acontecera e fôra por ele presenciado. Essa lembrança o forçaria a percorrer caminhos pelos quais há muito já não trilhava e molhar os joelhos de águas turvas e malvas. O outro falaria até que ele voltasse de sua incursão pelos três estados físicos das brumas da memória.
Antes de partir, dirigiu ao outro um olhar de não confessada despedida, pois não podia negar a influência que o outro tivera nesse pequeno toque de uma filha bastarda do amor à sua pessoa. Infundida a etérea e imperceptível mesura, largou as mãos sobre o colo e se pôs a escutar com falso engajamento a narrativa da vez, e sim, já a ouvira antes, mas enfim, que se poderia fazer? Afinal, já estava com os pés molhados e constatara com espanto que o outrora núbio canal se afundara num charco, onde o ritmo implacável da correnteza não se via pelo lodo ao fundo das águas diáfanas sobre o indefinido solo.
Era nessa clareira do tempo que devia mergulhar e chegar ao reverso da vida, sim, tinha que voltar à eternidade sem se doer ou protestar e talvez se afogasse. Mas a memória das águas era amor e caso o tragasse sabia que seria cativo imortal do próprio coração a jamais deixar de bater, ecoando a vida lá fora, que se esvai.

sábado, 30 de abril de 2011

Uma pressa e urgência que no cerne imo do momento
o congelam e o definem em medos e desejos cegos
algo caiu num plano anterior que o reverbera por inteiro
ele então também cai desfalecido, ninguém o podia
com tanta propriedade como ele então o fez
e por isso talvez, ao fechar dos olhos ele pense
no desvelar das pestanas sobre os ombros pálidos
e agradeça por tudo de belo que ele furtou de um saber
que não o dos homens que se encerram finais sob o solo

Marcha

Com um gosto mal-lavado de manhã na boca,
ele parte sem considerada discrição para a rua
sabe que o olham e o julgam com olhos cheios
que se refletem no argênteo sorriso de vitória
suspensa em goles de glória aspergida,
essa é a resposta à vida estéril que lhe exilou

Pois vive nas horas primeiras desse dia,
o fim do que lhe precedeu e lhe desnudou
em lençois estranhos e lhe disse "não"
entre beijos e rasgos em mãos e lábios
em funérea expansão do desejo ao risco
de ser gasto em ganas de garras à pele caras

Mas é só um intervalo, uma fortuita apnéia
pois na marcha compulsória pós-noite morta
a abertura que o toca também o impele
a tomar não mais o conhecido rumar
e ele volta para casa tão conformado no desamor
que ele olha para janela, em busca da distância
[e se deságua com uma violência e audácia,
que não muito costumeiramente, ele dispensa
não para o nada e ninguém, só para si]

sábado, 23 de abril de 2011

Sem condicionais, sem desculpas
eu olho para tudo aquilo que eu deixei para trás
como um reino perdido em heras esquecido
e nele me aventuro sabendo que o nunca mais lá se esconde
tão cedo eu o reneguei ao lá entrar e fenecer
a distância dos dias aos dias que fizeram uma vida dentro de outra.
Parto nú envolto em panos e nomes de papel
Tenho predicados e certezas, tenho um endereço.
Tenho tudo aquilo que achava indigno possuir perante
à grandeza que eu clamava por ser a liberdade.
Eu abraço o passado negro e deito na relva e
me dou por vencido. Penso enfim ser possível
esquecer a leviandade de outrora e partir
de onde eu nunca estive para onde eu nunca irei
sem jamais voltar para onde eu sempre estarei.
E à cada noite, cuja outrora inaudita ternurafinda,
se dá por esvaída em meus olhos brutos
e eu sou todo massa e um calor tão característicos,
que eu devia ser estudado como a coisa que me tornei

Como um isso que sempre traz a mesma história
que sente a vida retroceder alarmante para depois
lhe quebrar nas costas em solavanco abrupto
só para lhe dar a esperança de um nunca mais

Porque nunca me disseram que pode-se ser feliz e sofrer
e que tudo pode se dar como se quer e ainda assim
posso me achar pequeno e alvo imolado à uma paixão
que pulsa e me deixa tão longe de onde eu estava

Mas sem uma antes. E tampouco há ver um depois.
sem tempo, sem linha, sem nada que o clarão do Sol
que perpassa a carne de meus dedos de unhas sujas
possa me ocultar do maciço do meu interno.

E eu poderia matar essa paixão, como quem se mata aos golinhos
com medo de ferir algo que se esconda além da vida viva
e só quer na suspensa apnéia, se viciar no ar de um folêgo roubado
e dele fazer éter e ascender aos mistérios próprios de quem ministra
os anos com o saber sádico de que eles não passam

sábado, 16 de abril de 2011

Redemoinho

E me definir não mais sargaço
mar sem orlas, cuja areia das praias
teria então por grãos os aquilos que me são
com cada onda me trazendo um pouco
do mar do que não é, até que em capricho
emerge em mim e me permite afirmar
que, inescapavelmente, eu sou
até que o vento me leve
e me faça dele a sua voz mais forte,
até que, por capricho, não mais
e em quede em pó das nuvens até o mar
gigante incógnito e sargaço.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Ruptura

E na mão dele
eu soube me partir
não mais em cacos
de opaca porcelana
mas sim, em estiletes
de agudas pontas
e não mais viver
tal qual cálice levado
aos lábios outros lavados
por cinza e tabaco
por fim ser
prisma perdido e sagrado
a repartir a Lua e as luzes
em cores que só as criaturas
baixas e sujas como eu
têm por íris e nuvens

Operação

É aqui que eu faço a incisão,
esta é a artéria, esse é o local
um corte e então o sangue,
se esguichando até sair a linfa
e talvez, se eu for fundo o bastante
até o imo cerne da carne
e com assepsia irrepreensível
eu me inocule milagrosamente
disso
e jogue fora o que restou,
junto com as luvas
e os demais instrumentos
obviamente descartáveis

domingo, 10 de abril de 2011

Porque não há uma música ao fundo
e uma mão de dedos corridos nas cordas
e uma voz a me ecoar os passos
que quando eu falo aquilo
que eu mais anseio - sai tudo sem som
e eu não sei se consigo distinguir meu timbre
entre tantos aqueles que clamam
pelo mesmo destaque do burburinho
rumo à confissão nua e civil
numa mesa qualquer
bebendo alguém refratado num copo
de vidro

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Enfim, a comédia

Acabou e eu rio solto,
sabendo que a cada gargalhar
um pedaço de mim pode cair
e eu quebro tão fácil, tão frágil
que nem quando eu me amo
e ponho a mão minha entre as dele
e elas me engolem certas
tanto quanto eu estou de que eu
me parto ao meio no amor,
e só me gosto quando me adivinho
perto do fim de mais um eu
que não durou mais do que um desejo

Birds Rising

Os pássaros arrevoam,
e a ela não resta outra pergunta,
mas ele não responde,
canta-se próximo e bem alto
enquanto eu passo e todo o instante
ganha um peso e um ar
que se eu não puder suportar
eu deixo de acreditar que as coisas
e os dias possam ter um sentido
E lá vão os pássaros, e nada pode mudar
o fato de eu ser um homem para sempre
e eu nunca ver o mar senão no que eu mergulho
e jamais aquele sobre o qual eu poderia existir
enfim leve e findo, pronto.

4 meses (Pt. 2)

Desistir? Jamais, ela continuava
e ele estava lá atrás.
Fazia sentindo pensar em vitória?
Seria esse o derradeiro agouro?
Sob que signo cometeria o crime
e cessaria essa dúvida vista em passos
quase léguas, distantes e estrangeiras?
Jurava como alguém e já não tinha nome
só estava lá e tentava vencer a própria derrota
e ele caiu, e Deus, isso já faz tanto tempo
que a saída agora é fugir de si mesmo,
pois as ondas agora sobem e o mar já não é
algo belo que permanece e resta
não, ele bate como ressaca e lhe traga
e ele sorve a dor como quem se afoga
e expira a vida primeira pelas guelras...

Reflexão 2

Ele corre, as cores passam
o chão escorre e algo se esvai
Algo precioso já não mais o é
Mas não, ninguém olha,
é sujo e cadáver
semelho ao cru caráter,
e ninguém pode lhe dizer para onde
ou para quem? Não e só.
Talvez uma placa, um número,
ou o cosmo numa barata,
enfim algo sujo e pequeno
que ele possa nele se esconder do lar
e falar ao medo, como quem fala ao amante
e não lhe temer os segredos do leito

Reflexão 1

As vezes que eu me traí, que eu me matei sufocado
em éter na mordaça mais diáfana
e eu ainda me atrevia, sonhava
eu lhe chamava "me salve!"
Hoje à noite, esta noite, nessas noites...
E saber ainda que eu lhe devo tanto
porque eu nunca me dava a você
eu só me jogava fora
e agora e que eu posso fazer de um agora?
Deus, o que eu ja pude acreditar que eu podia?
eu saio e deixo um então aqui, largado
para nunca mais

sábado, 2 de abril de 2011

Tragédia Grega

Então de súbito, tem-se todo um arredor
e ele pode procurar por uma parede,
mas só há aquilo que ele não pode tocar
e as vozes o torturam nas sombras
tal qual penosas sirenes no seu horizonte
Ele percebe, ao fim, depois de muitos anos
que já não há mais porque ser mártir
Mas é claro, ele não tem motivo
para daqui fugir, tão logo eu me
externo do escuro e estendo braços
alvos de olhos e fomes, e com isso
lhe estendo todo um mundo que
pulsa em postas e irrompe nos sussuros.
Em algum lugar desse mundo toca
alguém um sino, lembrando a todos
o caminho até o portão dos jardins.

Órganon

E se eu visse todos vocês,
enfileirados, categorizados,
alinhados, taxonomizados,
não acho que me seria mais fácil,
pois o fantasma que mais
me assombra o sono
é que aquele que ficou de mim
em cada recusa e despedida
que não dei por mim,
em nome de um nós
que se desata e ninguém nota

4 Meses

Se ele quer algum luxo,
ele escolhe o outono
e os matizes de roxo
Mas ele está cansado
(já não mais acredita
que ela um dia foi real)
e não se lembra que
já desceu a ladeira
mais de uma vez,
então ele quer uma escada
como uma só uma agulha pode
perfurar a mais profusa escuridão

Universal

Eu rezo,
reze você também
e a vida passa a ter
um pouco mais de ritual.
Se eu chorar
e você também
enquanto rimos por dentro,
finda-se a fanfarra
dos atores no púlpito
e podemos ir para casa,
livres enfim da Salvação