domingo, 31 de julho de 2011

Inferno Astral

Será que eu realmente posso estudar a minha dor? Há nisso que me desestabiliza tanto um ponto de apoio no qual eu possa ensaiar minha campanha contra ela, por mais mal-fadada que tal empresa seria?
Ah, realmente não quero me perguntar isso. Pois, sei muito bem que não conseguiria. Deito-me todas as noites com meus fantasmas; vagaria pelos campos e escombros da escaramuça e me refestelaria no meu infortúnio, como tantas outras vezes já fiz. Seria ingênuo pensar que agora, pela profundidade da ferida, eu seria capaz de algo diferente.
Como se eu pudesse me surpreender com tão pouco, como se eu não esperasse por isso. É bem patético que anuncio meu alinhamento para com os mitos que condenam a esperança como o grande Mal, esteticamente pelo menos. Assistirei com um certo prazer de vingança minha derrocada, como se chamasse minhas asas de cera pelo nome de Pandora, enquanto reservaria secreto nomes mais baixos e meus para os meus amores que me atingem com gravidade - com sorte, não serei vulgar ou Outro, não ambiciono ser belo em mim.
Cada paixão é um conceito e uma sentença. Em cada uma se encerram dores muitas e um primeiro motor para todas as encarnações de mim que se seguem ao flagelo fatal. Uma peste quimérica, legião se esconde nas minhas dobras e poros mais ermos e imos, sou promiscuamente muitos e quero ser esmagado pelos pés do mundo - no estupor de quem se fere em agulhas e águas, me tomo como que fora do espaço, esse grande limitador de memórias forjadas - eu, a barata última e sua exo-alma translúcida e insígne dos escalões mais baixos dos seres das sendas ocultas em torpe seda, o grão-símbolo do que deve ser imolado à aurora. Em suma, sou o supérfluo, o luxo que não se sustenta além do capricho inconsequente.
Em tempo, pois ele corre fora do espaço inclemente, minhas vistas se dão para o ar sargaço e eu estou preso em minha espiral descendente, e cada suspiro é uma lufada de vigor que é bombeada dos meus pulmões até o vazio que me cerca. Para quê? Para nada, para cumprir o ritual e nada mais. Eu caio e dissolve a minha boca as gotas de felicidade que regurgito nauseado pelo meu giro.
Ressoo oco no chão, ou no Fim - não sei onde estou. Mas desde então já se passou muito tempo, agora estou ainda mais perdido em mim mesmo, apesar de meus pés enganarem os que me passam, como se fingissem um destino, um propósito, mesmo que eu não faça nada.
Cultivo esse fiapo de paz que meu tormento me deu, e atualizo esse nada em todas as minhas ações, como quem tece uma mortalha para um cadáver que tem o seu próprio rosto, mas que sabe que não deixa de continuar em uma outra parte, que adivinha a vida, não por vivê-la, mas por farejá-la, mesmo que ora como uma presa, ora como um predador, e quando, para meu delírio onírico, como um pequeno estilete a refratá-la.
Então é isso mesmo. Fico aqui, na minha nuvem, tecendo brumas e ocultando estrelas, pois de onde eu estou repousando, o brilho das estrelas as emoldura como um halo; eu vejo anjos que me embalam e me fazem pensar na Inocência, como quem se recorda de uma grande alucinação e a confunde com a primeira infância - que tolice, pois todos éramos tão pecadores que crescíamos e acreditávamos em Deus, com a malícia de quem o chama pelos nomes mais sujos, dentre eles o do Conhecimento e o do Futuro, e dessa cópula profana, divinávamos os mais terríveis demônios.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Minha ideia de "dia na praia"

Escavo na areia, invisível a uma multidão que me passa e me ignora ativamente - não sabem me dar lugar em suas belas imagens, então me tornam anônimo aos seus olhos, paisagem - o que é tanto melhor para mim, pois esse é um dos refúgios mais fortuitos para os atos sujos.
Minhas unhas mal-cuidadas entram e saem da areia com inesperada destreza, como se soubessem que se trata de uma situação de grau delicado, cuja sustentação exige uma habilidade que dispenso apenas nas horas mais diáfanas. Penso eu que encontrarei alguma coisa - nunca foi meu objetivo - ou que acharei uma porta, uma porta  deitada, oculta nas camadas mais superficiais da praia - como se toda minha perspectiva fosse produto de um complexo jogo de espelhos, cujo um dos componentes se vê estilhaçado em mil pedaços e daí se faz o caos das vistas, a cegueira da promiscuidade visual - só para mim, que me abriria um reino de eleitos marcados tal como eu - abstração divertida não menos quimérica - ou que ficarei doces horas sob o Sol, como quem se dá a um Deus, num sacrilégio de imolação temporal.
Não olho para nada a não ser minhas mãos irritadas pelo atrito dos minúsculos e milhares grãos, correlegionários daquilo que é pequeno e muito, a legião do inanimado, minha nêmesis primeira, pois tenho em mim a grande suspeita - no crepúsculo da existência, há o limite da razão e do possível: nesse após-mundo, há todo o mal do inesperado e tudo é Terrível, isto é, é por excelência de ser, extrapolando as noções de modalidade; falo de atos gratuitos por falta de um termo melhor - e seriam esses os primeiros arautos da morte de um sentido qualquer, sua mensagem é o fim da humanidade de maneira silenciosa, sem que ela o perceba e subsista, o retorno ao Éden.
Menos profecia do que medo infantil, me faço criança ao levantar da praia ao cair do Sol, com um semblante de derrota, como se a alegria tivesse me acompanhado até então. É só mais um dia, ou menos um se assim soar melhor. Mantive as mãos ocupadas e as vistas nubladas e os ouvidos pesados.
Não vi ninguém, mas os escutei, em toda a sua compaixão para com uma bela vista, alguns se detinham de suas espirais de querelas infindáveis consigo mesmos para apreciarem o mar, já outros eram mais insensíveis a isso, mas talvez contemplassem uma beleza muito grande para mim, que aprecio naturalmente as mais óbvias, meu único segredo é na mesquinharia - sei daquilo que é pequeno e acaba na palma de uma mão e é mais insignificante que todo o resto; sei também o alívio de sentir essa nulidade em mãos, como a relíquia de um santuário, ou melhor como uma coisa preciosa e clandestina, pública, mas só para os meus olhos.
Nenhum deles tinha, porém, pudor e aqui confesso meu resquício de moralidade. Tenho no pudor o mirante de toda arte, o recato e a cerimônia para aquilo que nos escapa o tato dos sentidos todos. É por ele que posso me escavar uma fossa na areia e de lá avistar as esfinges com seus enigmas, e as plumas das bestas aladas a errar pelos céus, eu saio de cena e me reconheço um espectador, que por mais engajado e ativo no seu lugar, sabe-o justamente fora de cena - é claro, que isso só faz sentido, se tenho no Belo, a alteridade ao Eu, e bem, isso é muito longo e estou precisando de um banho.
Pego esse dia inútil em minhas mãos e o jogo fora, cavei, afinal, na areia, uma poço para o nunca mais. Divirto-me olhando para o sem-fim com certa segurança e faço disso um depositário de misérias, de humanidades por mim renegadas. Sou bem pragmático e condicionado - extraio da vida tudo que ela pode me dar pelos preços mais baixos - afinal, sou pobre de espírito, se já não o perceberam

Monstro

Chega um momento em que o verso não me basta. É hora do sujo, é hora minha. 
Nessas horas de desespero é que eu me lembro dos grandes medos, e atravesso seu palco com uma coragem fingida que todos reconhecem como tal, mas não mo dizem. É tudo parte do espetáculo. Sou agora, mesmo canhestro, um equilibrista, e sob minha tênue linha, jazem setes reinos hindus de céu e infernos. Sobre minha cabeça, tudo aquilo de que eu sei menos ainda e cuja vista me ofusca os lábios, que se fazem pétreos e opacos.
Pode o nômade carregar sua vida com toda a sua dor, posso realmente dar-me com a leveza renovada de uma primavera aos mesmo ritos que por essas sendas malditas me encaminharam? Eu que nem tenho o conforto do divino culpar? Que sequer posso o dedo torto, em riste, apontar?
Ah, mas eu devo. E que cada passo seja uma maldição a essa história, que eu morra essa criança tola e expectante em todas as encarnações de minha ímpar existência, que eu me torne, enfim, o monstro que sempre vislumbrei nos espelhos, cuja iniquidade, o sardônico pensar refletia o brilho nas ilhas ermas da noite, que eu adentrava modesto, um visitante.
Se Monstro enfim, eu me vou para à noite e sei o seu cheiro, sinto suas cores no vento frio, que corta da pele, as doces e pueris esperanças. É a noite a hora da inclemência, pois é o seu vento frio que revela aos homens o pequeno e torpe mal que lhe são suas esperanças, um veneno tosco exposto à luz negra, e que dá então, aos seus vassalos a chance de  morrer em glórias dos caminhos inacabados, eles que singram distâncias enquanto sangram na cama, unidos na insígne dor de um desamor antigo e primeiro, cujas manifestações são as máculas de suas frontes atormentadas e retorcidas - sim, é uma batalha pela dignidade mais básica de um andarilho; uma luta sem glória que não a própria de se fazer anônimo à dor, invisível ao amor e escapar de toda a metafísica.
Então, é ao luar que o Monstro agora se mostra, sem seus dentes, sem suas garras. Traz em si apenas, um olhar cego que carrego com quieta dignidade, sem valores, sem moeda que não a própria escaramuça na pantomima privada das pequenas emoções que vexam o véu singelo da mocidade casta em suas promiscuidades.
- Encerro aqui, nesse lugar que faço sagrado, as grutas mais ermas do meu ser. Que repouse aqui, as minhas chamas mais brandas e ternas e tenha eu, a gentileza de não as perturbar mais. Ganho a noite sem esperar pela minha aurora.
É com alívio que me deixo e me torno aquela parte mais revolta do vento, que se faz na calada das horas e insufla o vôo da cinza dos momentos. Sem perdão, sem violência, apenas monstro, apenas isso que é, e aparece sempre faminto e esgarçado em suas forças, aborto da vontade e do amor-próprio, e que se olha com a grata surpresa de quem encontra um pictórico estranho e adivinha no cheiro de chuva que vem pelo ar, que nunca mais o verá

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Desprezível Amor

Desprezível amor, que me corrompe a retina
e me esfacela a íris em pilares cortados de rubra dor
que faz do meu frio e insônia, os únicos frutos de nossa
efêmera cópula, seu crápula, amante ingrato

Peço perdão por minha brusquidão
e clemência por meu ridículo,
ah mas agora, que estou livre
eu vou para o meu primeiro fim

Desprezível amor, sem você, não há olor
mais doce do que a de uma noite virgem
a me encobrir nos seus sortilégios antigos
e me fazer novo, parir em prantos do pranto

Besta pagã, eu me divino das cinzas
e me desenho nas achas da fogueira
em cujo redor outrora dançava
Devo ser, doravante, nômade de mim mesmo

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Cruzar aquelas vielas escuras no cerne da solidão era uma tarefa árdua e arriscada - mas como recompensava bem! Cada sombra era uma ameaça e minha miopia sempre soube tirar o melhor dos borrões que passam a me cercar - tudo é fantástico e perigoso, monstros e arlequins retorcidos por minha cega teimosia de não usar óculos.
Eu mudava de calçadas, eu apressava os passos e elegia heróis no cair da chuva. Me aproximava e os usava de escudo contra os que tomava pelos vilões. Sem bem ou mal, os heróis eram aqueles que eu via melhor e andavam no mesmo sentido que o meu, só que a frente. Inversamente, eram os vilões aqueles cujos borrões eram negros e retorcidos a princípio e seguiam para o embate comigo. Era um prazer baixo medievalizar minhas madrugadas em justas de cavaleiros, mas esse era um dom só meu - feiticeiro e donzela, o poder e o ego - e era tudo tão lindo sobre aquelas ruas olorosas e amiúde povoada de seres ébrios e caricatos, os quais, para o meu deleite ocasional, interagiam comigo espirituosamente, quando num dia perfeito, uma velha mendiga me confundiria com uma menina, o que comoveu a alegria geral de minha trupe.
Era bom andar com grupos pequenos, com pequenas diferenças entre si, um degradé que não deixa de ser um tanto monocromático. Enquanto alguns viam nesse humor uma afetação, as mais elevadas riam dos risos entre os risos; do riso da mendiga para mim, do meu riso para ela que na verdade era para todos, e ainda o riso que a plateia dispensava ao ator pro-eficiente, que cumpria fatal as deixas que a noite de espetáculos lhe reservava. Melinda era baixa e voluptuosa, mas era um primor técnico rir com ela do mundo e de suas criaturas, caprichosas crias do acaso e da miséria inflacionada.
Mas agora, eu estava sozinho e, de fato, havia perigo naqueles caminhos. Meu fim seria, porém, outro dia, constatei eu indiferente ao chegar nas artérias mais congestionadas daquela noite e ver gente em cada perspectiva possível. Como cresciam aberrantes aos meus olhos, eu que até uma hora atrás estava a me rir com elas e dançar suas músicas ruins e seus amores furtivos para a alegria de todos perante a comunhão máxima das vidas que não as suas próprias.
Tal qual outrora os grandes banquetes precediam os dias de rigor e fome, o inverno que se anunciava a cada novo dia nas cidades de luz e lixo era uma morte anônima e cifrada na privacidade pequena de cada um desses comensais que agora viviam tudo aquilo que julgavam ser excessivo e supérfluo - como eram moralistas por assim crerem ser aquele trista e comedida amostra de arroubos cômicos e furtados algo digno de punições maiores do que uma ressaca.
De qualquer forma, eu me sentia seguro por estar no meio deles. Porém, não ando sozinho de noite para me sentir seguro, e se é o caso, o melhor é eu voltar para casa.
Mas eu me detenho e dou voltas nas ruas movimentadas, driblando ostensivamente os pequeninos ladrões, e languidamente pousando os olhos sobre aqueles mais felizes, como se fosse eu quem pedisse as esmolas de uma felicidade rasa e de graça, que se destinava a uns felizes eleitos de divindades menores e mais pródigas - eu que rezava ao Terrível, aquele quem desfaz os absolutos e oblitera a verdade toda na torrente de si próprio - enquanto procurava por uma pessoa em particular. Estava escuro e nessas horas que eu cria ingenuamente que era mais fácil de achar aqueles que reluziam ao meu olhar - ah, como posso ainda ser doce na vulgaridade! Estimulo perverso minha coqueteria.
Levantava os olhos expectantes, como se levasse à luz ao caminho do tesouro, mas para nada nem ninguém. Mais cedo ou mais tarde, eu me daria conta futilidade dessa empresa e me subtrairia dessa noite. Minhas dores levariam meus pés para a casa e de lá, eu iria até o meu nunca mais.

domingo, 24 de julho de 2011

Eu estava no terraço do Bastião, meio perdido no meio das pessoas. Sim, meus ecos são cacofônicos por excelência e a excelência é o nome para a inércia quando ela é benquista e assumida, ou assim me rezam os evangelhos apócrifos aos quais me dedico a escrever com as palavras que roubo nessas noites mesquinhas de prazeres pequenos.
Uma certa soberba também me acossou enquanto me dirigia para um dos vértices do terraço, muito bem gradeado diga-se passagem. O Bastião era baixo, mas sou covarde, e seus quatro andares de cinza e promiscuidade adolescente me assustam - morrer lá seria antes por mal-gosto do que por fatalidade - além disso, já estava muito tarde para me fiar tão somente no meu equilíbrio.
Era um ritual que já não me trazia mais grandes revelações, a não ser a da obviedade disso tudo. Sim, a questão da obviedade que já me faz tão clara e intuitiva mas é obscura para você, meu caro Outro.
Antes, me era requerida toda uma bravura particular para desbravar as sendas daqueles que viriam para preencher as minhas. Um blefe, um desafio descarado e um orgulho inegável pelas recusas que construíram todo um ego artificial, um rosto por cima da máscara, que hoje é mais uma das várias faces gorgôneas e divertidas que tenho para combinar com meu guarda-roupa sensato e sensual. Me forjei na brasa dos toques alheios, moldado por mãos que não as minhas, mas sempre dirigidas pelo meu projeto maior e secreto: o silêncio por si mesmo, por excelência, vício da preguiça.
Enfastiado das minhas próprias surpresas, desses exercícios de gêneros, verdadeiras punhetas criativas, eu me abri - é tão bom quando as palavras são idôneas aos fenômenos que devem expressar - ao alheio e apreciei os resultados, tanto pelo apelo estético que da minha estoicidade provinha quanto pela promiscuidade ao me relegar aos planos mais rasteiros das relações, porque eu nunca fui tão ingênuo quanto eu deveria, como se eu estivesse uma oitava acima da que eu deveria estar devido a um falsete, um truque. Um truque dentro de um truque como se alguém além do meu Outro pudesse apreciá-lo devidamente. Mas também nunca me apresentei para as multidões. Sempre fui um artista de pequenos espaços e atmosferas espessas, os discretos e os arruinados me entendem melhor do que ninguém.
Enfim, era um jogo sangrento e sujo e eu adorava, porque no mais último era sempre eu contra eu - não tinha como eu perder então - mas agora, se tornou repetitivo, mas o que fazer no lugar disso?
Em outros tempos, essa descoberta do mágico como óbvio, teria me pesado mais do que meus doces de domingo. Mas agora eu era um pouco mais forte e cretino, sabia como escapar.
Ainda assim, era com um genuíno pesar e voyeurismo que eu me forçava a me imaginar desesperado e me jogando daquele triste prédio virulento. Sou romântico às vezes, e sei, portanto, extrair beleza da diafaneidade da pele inerte que se estenderia sobre as pedras portuguesas que restam na calçada.
Gosto de pensar que eu jazeria com o pescoço esticado e minha veia mais saliente se externaria trágica na minha palidez mórbida, reluzindo em acordo com meus olhos vazios. Meus cabelos revoltos pela última vez na curva de seus cachos e meu tronco alongado e deformado pela queda. Apenas um certo pudor conferiria beleza à cena - uma reverência de reconhecer o dano e a tragédia, como ver um quadro com cores das quais não se gosta, mas que não impedem o apreço da obra. Gosto mais ainda me me crer como alguém capaz de tais juízos, a morte é o de menos.
Enfim, no aguardo de novas pessoas com as quais me exercer na minha gloriosa condição de belo ser da noite, eu meditava arrogante sobre minhas paixões e meus labirintos. Como eu me diminuía nesses ecos, reconhecia ao menos que certos dias eu dava performances dignas, mas não mais me bastava aqueles trejeitos vocais e os abraços de entrega. A chama do ritual oscilava cada vez mais, fazia-se notar a ausência de uma nova vela a sustentar a velha chama, e não estava lá definitivamente.
Minhas meninas estavam felizes e bêbadas, deixei-as lá por capricho. Era um sinal claro de poder sair sozinho e ganhar o escuro das ruas só para si. Foi com certa tristeza e enfado que me percebi como esse misantropo envelhecido pelos transportes nas próprias linhas do rosto - novamente, é muita masturbação e eu já estava muito temperado pelos artifícios mais segundos para me contentar com isso.
Parto com meus deuses e deixo as luzes do Bastião para trás. A manhã se anuncia apenas nos meus olhos que já vem as cortinas e os versos que reservo para elas na minha lassidão - não sei o que lassidão significa, mas o meu hoje já é um ontem no início do meu amanhã; está muito tarde e a verdade também dorme de madrugada no ônibus junto comigo - posso tudo no meu sono acordado, e me permito o ócio e a inatividade. Dou os passos finais dessa jornada fragilizado pelo frio e tocado pelas gotas torrenciais de um dia que começara depois de algumas reflexões - falo do tempo meu, secreto e torto, que muitas vezes pára e retoma veredas até então abandonadas como lembranças. Viva à memória de mim e dos meus muitos amores anônimos - tenho uma mordida no pescoço e durmo fácil, sou uma putinha de filme hipster auto-referente - e viva à cultura

sábado, 23 de julho de 2011

Água-furtada

A cada dia que eu me fio
numa glória passada
e me entorpeço ao ponto
de não mais sentir medo
ao me relegar os pequenos delitos,
é uma eternidade que eu me deixo
ao pó a se coagular maciço nos poros
e que eu passo a me adivinhar com
a precisão de quem deseja nada mais
do que jamais vir a poder acertar
Mas, se agora eu digo sim
e estendo os passos na malva bruma,
não para o sol ou para o átrio
a resposta ou o indolor
e me dispo daquilo que até então
me fora o mais essencial e divino
Ah, eu sei que posso e caio,
por fim, atendendo ao chamado
maturo em ser da noite e o meu caminho
é não seguir e ir embora,
mesmo quando no meio dos tempos
eu anseio a sua voz e grito
o seu nome mais meu no oco da boca fechada
e ressoa no detrás dos dentes
um luxo que eu não mais me furto
na esperança de um maior

domingo, 17 de julho de 2011

Musicalidade

Depois de muitos anos de tanto escutar suas músicas,
seus planos e pianos, seus pios insanos, o canto inano
quando cessa a orquestria, ele continua a cadência
e seu corpo vira uma sucessão de notas agudas e graves
e sofrer é um solfejo impecável de ser atacado pelo alheio
de ser de todos e nunca mais seu próprio instrumento
mas num gracejo final, ele se sublima num penetrante falsete
cuja leveza e verticalidade, lhe impelem num glissando
Ele é agora imortal ninfa, mais do que Eco, e se faz
só para aqueles cuja alegria se escapa como doces
e melancólicos fantasmas que a luz do Sol faria as
antigas peles queimarem hereges à luz acorde
que urde e impera toda a marcha militar da vida

sábado, 16 de julho de 2011

Guerra à Felicidade

Faz pouco tempo que eu declarei
guerra à felicidade
e é em elogio à loucura
que me deito de noite
sempre só e sei que me tenho todo
para qualquer dor que se abater
sobre o amor que tenho 
ao andar de madrugada pelas ruas
e me saber um, onde não há mais números
e adivinhar em cada olhar que
se desvencilha do meu
um eco reverso, em preto e branco
daquilo que me faz partir todos os dias
e ainda assim ter no peito a cavidade
que anseio pulsar eterna no seu vazio

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Eva

Eva, e é a primeira evocação
a saudade na carne dos lábios meus
e à sombra da mãe, o reflexo da esperança
que se racha ao comando de sua voz
e por onde todo o mal chega a mim
E eu amo agora, enfim livre
posso não ser mais canhestro ao pecar
e me fartar das pequenas liberdades
e das grandes dores que fazem
dos homens, crianças doces e terríveis

Demian

Falo o teu nome em sonhos
pois desde muito estás comigo
e eu tão sem o teu acesso, cego
Só para que agora todas as minhas
águas convirjam  às sendas do que
sou mesmo quando não em mim
Sussurro louco e fausto pois
sou o primeiro dos meus homens
e fui condenado ao segredo
Mas o tempo do silêncio já passou
e se posso me fiar na memória
então espelham os sons, o nome
e meu amor dorme, enquanto
rezo, desde o meu sexo, a Abraxas

domingo, 10 de julho de 2011

Cinema

O technicolor ainda não chegou ao pensamento
e é quase injusto ter que sentir de modo tão analógico
que quando eu me vejo sozinho no cinema escuro
eu parto para um além no qual eu não seja refém
de um mundo em branco e preto,
enfim, eu me dou outros nomes para as brumas
e rio e choro porque é como se eu me afogasse em águas

Mesmo os filmes bons - esses são aqueles que
eu não consigo esperar que acabem logo
Tal me é a urgência de senti-los
antes que feneçam nas palavras mais promíscuas
Há de se convir que em algum ponto,
a arte deva se separar dos prazeres do sexo
do contrário, seriam eles dois abertos em seus segredos
para os mesquinhos e os incapazes,
fazendo das conquistas, dádivas divinas
E se Deus fosse bom, ele nunca teria feito o Belo,
isto é, o pecado e seus muitos filhos

Estética da gratidão

A primeira lágrima que cai
é aquela que se verte pelo fatal
pelo propício pretexto factual

Ah, mas se o ritual se faz
então a torrente terrível jaz

Não consigo ser mais do que eu,
eu choro então por mim
e isso me faz tão feliz
porque, enfim, grato
eu não me encontro mais

E tudo vira uma música oportuna
no burburinho confuso de uma cidade
pequena demais para o ego partido
de uma só pessoa

sábado, 2 de julho de 2011

Da Satisfação

Nunca me deixe,
sem que eu te beije
sem que lhe toque
sem que eu lhe seja todo
quando eu cravo as unhas
na sua nuca
e meus lábios roçam no seu ouvido
e lhe dito a sentença
Nunca mais,
e eu já não deixo um rastro
e isso será só seu para lhe pesar no peito,
enquanto eu sigo a minha deixa