terça-feira, 23 de agosto de 2011

Tadzio e o silêncio

E quando eu já sei muito antes de saber coisa alguma que resposta alguma poderá me satisfazer, isto é, quando se ultrapassa o transcender do conhecimento, desse estado de alteridade à uma outrora tão confortada ignorância, mesmo quando saber não é ter verdade ou poder, quando só subsiste um sofrer sem cor e som? Ainda é sofrer ou alguma outra aleluia ressoa mouca ao compasso dos meus pés errantes? Mas, eu ainda faço amor e como com igual afã! É engraçado que me surpreenda com isso.
Acreditei no amor e na arte; os confundi entre si, não como as duas cabeças de uma hidra ou como os três nomes de um Deus, mas sim como algo profano e proibido, mas que quer ser de todos (todos? todos os que lhe forem bons o bastante, é claro) - algo como a verdade. Eu divinizei toda a sensação, eu me fiz um templo e sortilégio para todos os ritos e releguei à técnica o segredos dos iniciados, e do gozo, a graça. Minha cristandade está nas minhas palavras ou nas minhas paixões? Vivo o meu reino dos céus quando eu choro escutando minhas músicas, ou quando pinto todas as horas em cores vivas e sei doer cada fibra dos meus lábios a se esgarçarem em sorriso frente às letras de um livro - pois, como não, se após cada silêncio de vida, eu reencarno, três dias ou menos, trago-me pessoa amada a mim mesmo, novo e bebê, eterno samsara?
Se já é muito crer no detrás de cada mundo, o quanto é mais extravagante crer nesse mesmo daqui? Parece-me absurdo que a força toda de um agora não comporte duplos e jogos de espelhos - memória e imitação, lésbicas, mães adotivas do amor e da arte.
Não quero a esperança de uma correção. Apanhar me é muito caro, é mais um sofrimento para quem é mesquinho e vive deles, eu que gozo na doença, que tenho gratidão para com a existência porque eu senti e aprendi, ora quanta auto-satisfação, quanto egoísmo míope que não consegue olhar senão para baixo a fim de se sentir nas alturas, quando não, olha para cima e pensa que já está quase lá!
Não quero algo nobre, ou até mesmo bom, acho que não quero nada de todo. Mas isso tem que ser externado. Falar sobre o nada como tantos outros antes fizeram, ah, minha pretensão é muito maior com isso aqui.
Falo do silêncio - daquele som que todos que vivem da noite sabem. De espreitar e pegar o mundo em flagrante em plena madrugada pós-coital naquele não-som que até irrita se não se estiver disposto para ele e sorrir enquanto sobe as escadas e vai para cama sem saber ao certo onde vai acordar - esse silêncio ninguém quebra e fala baixo, com cerimônia e um pouco de medo, e, quero crer eu, com uma certa atração, como quem o quer para certos momentos, o repouso da labuta, a distenção, o equilíbrio frágil, mas certo e confiável. Até que dele se cansa e se fala e ri! Ah, mas ele foi embora bem antes! Mesmo o mais bruto dos homens tem o senso estético mínimo de esperá-lo passar, como quem vê passar a cauda de uma divindade tropical e tempestiva e olha para ela sem vê-la; e mesmo o mais capaz dos homens não o conseguiria, a grandeloquência e o senso de oportunidade, o timing, o kairos: as distâncias que singram os homens na transporte do silêncio à arte, mesmo que à arte ruim - que não deve ser jamais temida, sequer ignorada, apenas consumida e digerida adequadamente.
Mas se digo antes que amor e arte são unos para mim, como se faz o amor no silêncio? É pela profanação, pela reverência, pelo metafísico? Ah, mas eu sei que amar é um sofrer tão grande, especialmente quando é bom e eu quero fazê-lo tão bem, quero ser terrível, cruel, atroz, com a satisfação pequena de quem sabe que fez algo bem (advérbio para mim de cunho sempre estético) que eu penso em Tadzio.
Não falarei de Tadzio; falarei do que ele criou em mim (além da prova de que arte pode ser mais do que espelho e muleta, da resposta ao anseio primeiro da identidade) - o amor se faz justamente nesses momentos inauditos. Eu sei quando que o meu coração irá se partir: certo dia eu vi que você nunca me amaria.
Esse dia nunca se deu, mas eu sabia, e você nunca me amou e nem nunca amaria. Obviamente, só vim a percebê-lo muito depois desse dia - e nunca houve negação da minha parte, pois só se ama quando se é honesto para todas as mentiras.
Assim como eu conduzirei, não subterraneamente, não por detrás do que eu digo, mas do que se diz de fato com o corpo, com as expectativas, com o que não se sente, mas se sabe, mas se escuta no nada do vento, naquele gosto, naquela sensação esquizofrênica de invasão dos aquilos anônimos de morte que sempre assombram a humanidade, é assim que se faz amor, obrigatoriamente no silêncio! Num silêncio que só faz som quando quebra e deságua e caí terrível e catastrófe, tanto gozo quanto choro, catarse.
Não é então que a arte se faça, mas é só aí que se deixa de vivê-la, que ela termina de se pintar com você mesmo e você pode observá-la e sentí-la. Até lá, só há silêncio

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Quimera e o fim

Sempre ao meu lado, meu único perene cultivo na mais outonal das primaveras que se fazem nas folhas passadas de minha vida, é a arte que me sustenta e me dá nome. Quando depois de tanto tempo, de tantos calos que me fiz, de tantos poros que me abri, de tantas sensações que me contorcem em todas as metáforas possíveis e me levam para o mais da felicidade plena, de tantos nortes e de tantas bússolas partidas em ouro e fogo, foi que eu pude dizer chega? Ah, porque agora se fez a última música e a última peça para essa alma que se reflete no preto e branco das páginas de qualquer livro ruim, de qualquer memória boa e forte, que se dá para a sinceridade declarada das grandes coisas do mundo - e nesse mundo falo do além da morte que não faz sentido estipular fora da própria vida - e que vive sem nenhuma necessidade de verdade e de desejos, que vive tão bem quanto respira e pinta a cada passo que dá e a cada farpa que lasca do coração, cuja casca se apodrece nessa mais atual estação - é você então, a luz dos astros e sua distância que condenam o meu tão-certo errar? Mas qual o deleite e para quem? Pois sim, o é se há a arte!
Eu parto agora para o meu sempre anunciado e cálido nunca-mais, para o fim das prescrições, para o ocaso de uma moral! Porque eu sou pequeno e acabo aqui mesmo, onde dá nos olhos e onde o vento me entra pela boca e tem um gosto todo especial, eu que me queimo na luz do Sol. Eu aprendi uma vergonha versada, um ardil mais sutil, o vértice do agridoce e múltiplo resplandecer na artificialidade, eu aprendi a andar de noite na rua.
Filho do meu século, da minha cidade, do meu sexo, do meu intelecto - mas não da minha paixão! Eis que dela eu já me despedi, por mais que eu lhe volte os olhos durante o dia - é preciso ainda crer no tempo para se achar que há algo como uma volta depois dessa ruptura, mas por ora isso basta. É noite em um meridiano invisível no mar azul e só e quem pode se enternecer com a sinfonia cheia dos ventos nas rochas encarnadas das chapadas? Ora, eu vivo na luz roubada da Lua, emprestada, de favor; porque eu sou um miserável declarado e dissipo nessas horas, no meu mais agudo desprezo a mim, a força que eu imperei sob o meu corpo e roubo dos filhos meus a loucura que tentam as mãos anônimas dos dias me subtrair, só porque não sou mais criança.
Mas o que são esses motivos, esses pequenos e curtos temas e fugas, para quem contempla a presa no se apossar do amor e adivinha os nomes primeiros de todas as cópulas? Dissolvo a pergunta na aurora, e creio chegar a resposta nos raios que se me despontam no horizonte, por isso eu durmo e faço arte pelas manhãs. Para esquecer que há algo mais ao qual não devo nenhuma gratidão, nenhum alívio e que me faz parte de um mistério, pois é o pecado meu, aquele de erguer na arte os pilares de um pudor e ritual que me lançam às cavernas. E aqui é tão úmido e sem conforto! que eu acho que não quero me mexer por algum tempo - será que só eu, às vezes, não consegue achar mais paz do que quando na boa consciência de que está no lugar do errado, e com a cabeça deitada num chão pedregoso - eu, que às vezes, gosto de subir até as nuvens e tecer outras para ninguém, como se esperasse um balonista para me sequestrar, a sereia e a viúva-negra

domingo, 14 de agosto de 2011

Nômade

São mentiras tão pequenas e sinceras, as que eu preciso
todos os dias, porque eu sempre saio de casa para
nunca mais voltar
que se faz o caso, de ser aquilo que me cerca,
faces recicladas, e futuros remoídos
esperanças carcomidas e celas áridas
pois, se sucumbir nos altares da promessa mais dura
é mais que um preço, mais que uma dádiva
é um desejo e nada mais
e ser nômade é não falar de si mesmo quando no mais oblíquo da razão
e ser final e sóbrio como quem não bebe o sangue da fonte há mais de muitas vidas
e pontuar as frases e orações como quem toca a música
que todos os solitários escutam quando rumorejam pelas ruas ao luar
ah, mas quem tem a graça para se ausentar do palco no melhor das festas?
e de deixar na própria boca, a bendita saliva
a umidade santificada pelo silêncio das grandes glórias do tempo
e vulpino, rapinar de si o fim sem fanfarra
que dá paz aos homens e às coisas que se dão nomes e amores
como quem pára e olha para o mundo, de vez em quando
e se apaixona sorrateiramente e mesquinho
e esquece fácil, oh, tão fácil...

the Boho dance

E seu eu quiser mais e justamente isso que eu terei
das papoulas, inalo o brio de um desejo, misto castigo
e casto, imolo meios orgulhos e sinas, pois agora sei
ao quanto uma vida de rumores e segredos me instigo
a operar em minha face - oh, tão cirúrgico agora -
a máscara mais torta em lágrimas e rugas salgadas
e rir e chorar, enquanto aspiro ao mais divino profetizar
tudo isso na comodidade profusa e promíscua
ao tomar meu café e rememorar saudoso o áureo roçar
da glória em mãos, que tão pedestre se esvai e recua -
e é nas calçadas sujas, nas pedrinhas portuguesas
que o dia de antes caí tão certo sobre meus ombros
quanto o Éden sobre os meus doces e mudos mundos
- Sim, eu me lembro tão bem de tudo. Tão bem que às vezes sinto que tudo pode passar e só eu que fico mesmo. Ah, mas aí... é aí que está a mágica.

domingo, 7 de agosto de 2011

Jamais provarei da sagrada carne. É no mais banal dos dias que se passam lentos que as grandes realizações se fazem, mesmo quando eu não as percebo. Como em sonhos, eu as noto muito depois e costuro o tempo que me faz cognoscente do imediato e do mais místico dos quadros: o agora me toma e eu me canto em fúria, impiedoso dos meus passados e com sede de mais.
Às vezes, na rua, eu vislumbro Tadzio entre os olhares que me partem ao meio. A beleza tem todo um rigor em sua indiferença, que alguém mais nobre do que eu chamaria isso de moral, ah, mas isso não é meu de todo. Vejo nos homens que passam e nas mulheres quase diáfanas, aquela beleza eterna e infinda em sua presença, como se o mundo todo se iluminasse ao redor de quem por eles se apaixona, reduzindo o seduzido em trevas, relegando seu peito ao abissal...