terça-feira, 16 de setembro de 2014

Fábula

O jovem, uma vez desenganado sobre as coisas que doem, deitou a cabeça no colo do homem que dizia lhe amar. Contando as flores ao redor, ele, enfim, disse ao seu companheiro:
- Acho que não se escapa disso. Isto é, de que alguém está sempre em fuga em relação à gente. Pra elas mesmas, elas estão quase parando, seguindo o seu caminho e todas as vicissitudes que nele habitam. Mas pra mim, pelo menos, é como se todo mundo passasse e me tomasse pela mão, roubando todo o meu fôlego. Quando eu paro de respirar, eu viro algum serzinho de jardim, uma fada, talvez, e tento acompanhá-las dobrando os ventos que sopram em seu favor. Elas me olham então e é como se eu tivesse sido sempre de vidro e me agradecem o favor. E eu fico lá, sabe? 

Mais calejado, e com gosto mais elevado, o homem mais velho fitava o horizonte calado, mas não fazia pouco das palavras do seu amado. De repente, conferiu ao seu olhar todo o peso e calor do seu corpo, dardejando o mancebo como um deus cioso de fulminar um infiel. No entanto, sua fala era calma e sua ira, era, em verdade, desejo bruto. Ele disse:

- Você quer que eu lhe jogue na relva e lhe ame furiosamente por alguns dias. Que eu te sofra a juventude e estupidez que lhe é própria, como se eu estivesse comendo um doce exagerado. Não tenho tempo para isso. Posso ficar do seu lado, posso amar o seu corpo, posso até te fazer em pedaços (que eu bem sei que você quer). Mas conheço teu nome e espécie. Não és nenhuma ninfa, mas uma planta carnívora. Tua forma, na verdade, é a de uma jarra cuja boca é vedada quando da captura da presa. Solitário, eu apodreceria dentro de ti, enquanto você, nutrido dos lentos sucos da minha dissolução só provaria a fel do meu coração e se amarguraria, pensativo e raso, "deuses, por que sou eu tão sozinho?".

O rapaz se levantou pronta e indignamente. Recuou alguns passos, talvez, para pensar melhor as palavras que queria dizer, escapando à visão do outro, que permanecera sentado, mirando os olhos abertos do firmamento. Por fim, distraído pela invectiva e pelas aves negras do céu a cantar, tropeçou numa raiz e rolou estrepitosamente colina abaixo. Ciente de que uma morte à altura havia lhe acometido, ele se permitiu algumas lágrimas, provando a beleza eterna daqueles que só conheceram a mocidade e os frescores do amor e da vida. Baixasse um deus melancólico e sem humor, ele teria sido arrebatado. Para o seu azar, o deus pequeno daquelas paragens tinha muito bom humor e pouca paciência para o azedume. Encantando, então, os seus abutres, que já se dirigiam para o recente cadáver, o deus pequeno lhes alterou a garganta e as asas, de modo que o ruflar das penas, o rasgar dos bicos, e o clangor da fome atendida, soaram como um adeus cálido de uma criança envergonhada que um dia ainda conheceria a felicidade. Sem se deixar enganar, no entanto, nosso duro e pobre namorado tomou seu caminho de volta e entregou seu passado aos pássaros, meditando o infortúnio dos homens e a pequenez de tudo que se parece com o amor diante disso.