quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Espiritualidade

Ele passa por mim,
tão leal que é
como se eu fosse uma ponte
em toda a minha indiferença

É, tem algo que não se diz nisso tudo
mas, quem pode censurar-lhe
e lhe tomar por um original
quando esse foi o primeiro pecado

Agora, eu vejo por cima de todas as alturas
o frio corta a pele, mas eu já não sinto
meus lábios racham e eu me desfaço em pó

O que resta então ao homem que me ama
senão uma nuvem fugidia de fumaça
que ele crê ser o homem que lhe ama?

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Brunette in the Bleachers

É viver das migalhas quase - algo que requer a dignidade de quem ama e não tem medo das migalhas. Eu escrevi uma coisa há tempos que ainda não está aqui, mas que sempre carrego, não como um amuleto, mas como uma promessa que cumpre à cada passo - à cada passo eu estou na rua e nem é de noite, e, é quente.
"Saber viver" é algo que não se sabe, mas resiste a verdade nesse atavismo: viver nunca foi matéria de conhecimento - é o próprio campo que propicia a fabricação de cada saber, ou seja, é um jogo de búzios e avelórios; brinquemos. Então, eu jamais me conheço, apenas me adivinho, e, quando muito, me divino pitonisa e profecia: duplo, antigo e onírico.
Assim, em dois lances, como se eu não quisesse nada, eu já desisti. Tenho todos os nomes feios sob o Sol, mas me regojizo perante a presença da Lua, sou seu emissário oculto, secreto para ela mesma. Clandestino, pernoito em minha casa, enquanto meu corpo se faz alma e voa para muito longe; como se amor fosse um outro tempo - algum tique discreto que sustenta toda a melodia improvisada de um erro, que eu repito todas as vezes em que falo o seu nome na minha boca.
Ontem de noite, eu visitei meus amigos. Depois teve um dia que foi normal, mas era mentira. Desde muito antes (e eu acho que você sabia) que eu já planejava - e eu sei que não enganei ninguém, mas não querem me ouvir.
Como explicar para mim mesmo, aquilo que me tocou no mais infantil, mais desprotegido e mais entorpecido? Como não me dar a razão certa para a qual eu quase me sufoquei na poeira e nos destroços? Sei que faço disso o mais difícil possível; esse é o problema, veja bem, para mim é o mais fácil.
Então me atrevo? E digo "hoje"? Mas até que já passou, sabe? Não tenho medo, eu acho, mas não sei se quero...
Me levanto dos destroços em busca de outros. Sou homem, sei que só posso saber destruir aquilo que faço, pois quero ser sempre maior do que a vida. Nunca me canso até que fico velho, e aí eu já estive sempre esperando me cansar.
Vejo a arquibancada e estou no deserto (fujo de Meca). Caravaneio incólume na areia e escuto nos grãos que se fazem vento, aquilo de mais sujo: a vida sem sexo e sem água. É tudo muito mais sujo do que eu pensava. Minha pele se desfez em óleo na travessia, sobra o seco que me segue até o que eu faço de fim, por falta de espaço em mim
- É melhor eu parar por aqui, mesmo porque já descobri que nem precisava de tanto - pronto, fui vulgar e fácil, lhe revelei o segredo e está tudo acabado. Ah, mas houve a pequena glória - minha púrpura trai o católico que há em mim.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Noite II

É isso - estar na rua, de noite, e sentir uma música que toca só para os seus ouvidos, que só penetra pelos pontos abertos mais obscuros do seu corpo - é o amor.
Que não tem nome e forma, mas que pulsa antes do sexo e depois do gozo! Sim, e as luzes brilham enquanto os ônibus passam de quarto em quarto de hora - como se o dia não acabasse e tudo passa por mim como em círculos.
Mas falo demais. Se me escutasse mais do que me vejo, logo desgostaria disso tudo. Porém, aqueles que são dados aos arrebates, por que não cantar a glória aspergida pelos dedos finos e longos da abençoada noite! Que se cubra os juízos pequenos dos homens e que de um amor só se façam vários como se nada tivesse uma casa para retornar - porque eu posso sentir que essa noite não termina nem quando eu durmo do seu lado e estamos depois do juntos.
Quando vejo passaram por mim os homens e mulheres solitários e os casais de mãos dadas - eu os sei todos sedentos - sinto no imo de cada pelo a cobrir minha pele corada, que temos sede e que queremos beber o sal das pedras, quase como se isso fosse o tudo da vida. Mas o que é o tudo, isso não se pode perguntar, porque é como pedir para que lhe ensinem a fazer amor -
Pois é nessas horas que o que há de mais tolos em nós ganha cores de pássaros e asas, e cada palavra dardeja além da tolice de quem as fala - amor e dinheiro se ganham na noite e ninguém tem que saber muito disso - e pedir um pouco mais pode ser crime ou não: depende de quem o faz.
No verão, a chuva vem e caí rápida, mas nem por isso se sai da rua ou se para de amar. No calor da torrente, enquanto ribombam os raios lá fora, e amantes acusam suas más contrapartes, alguém, por mais insuspeito que se finja, pode tropeçar no segredo e na comédia, basta uma dose inexata de bom senso.
Ver tudo isso e sentir na ponta das unhas a música primeira de toda a sua vida, como se não fosse nada, como se valesse menos do que o beijo que só se dá à noite dos que não vivem de dia, isso é o bálsamo, a grande panacéia, basta que para isso não se tenha problemas - a cura para os sãos: não, não é a famigerada vida eterna ou o saber do nome das coisas; espero estar entre iguais que adivinham a noite no mais grotesco e disforme da graça, tal é a brisa que guia seus pés e os fazem certos na penumbra, é um santo que peca, e nos salva ao nos jogar no grande abismo.
Não temer a queda - por mais que seja mais do que isso - talvez, não cumprir quesito nenhum... sim! Suspender em plena ação toda a distância negativa do puro espectador e fazer de tudo boca, pés, mãos, narizes e ouvidos, senão em busca, ao menos despertos aos chamados mais insidiosos e inefáveis - não os da carne, mas de algo que é vário e não é espírito; sim, que é sim e é mais difícil por ser fácil.
Se a travessia acaba não é por mal. Assim como qualquer condicional é incapaz de exprimir plena pena para quem dança como quem se vinga do frio e do calor, como quem excomunga os deuses e vive da luz. Traços rápidos e secretos por discrição são por eles desferidos. Surge o não-mais, mas só como fantasmagoria de uma vida passada - o que pode valer por anos ou por dias. Precisar demais as coisas é de uma vulgaridade de amadores, mas se permitir um melhor destino pode ser de um refino implícito e incalculável, isto é, algo de imprevisto que denuncia o favor da vida e das deidades do deleite.
Pergunte à irmã que dança sobre o túmulo das injustiças passadas e veja como reverbera nela o crispar de toda uma força em contagio de si mesma. Que música é aquela que contrai seus músculos e lhe imprime um som tão claro e puro? Nada mais do que qualquer outra coisa mesquinha e suja, que qualquer vadia consegue numa dose de vodka.
Música e dança como se fossemos algo além de um só - além do um só - e que concede a marcha como um dom da tarde em plena madrugada, como se o atraso fosse algo de tântrico e já pressentido - uma marca, que empolga os pés num compasso, tal qual uma corrente invisível, que se escuta no tilintar dos seus elos - sim, a música.
Então, o amante desenganado parte para o meio de tudo, como se nunca estivesse no calor daquele fora que era o dentro de uma coisa privada e pequena. Como um pássaro preso em mãos de amor e de expressa beleza. Que sabe um pássaro das coisas dos homens? Que sabe aqueles que voam da cadência dos pés na terra? Oh, mas se plana baixo demais às vezes, o bastante para se duvidar da certeza do céu e até da própria poeira do chão - por que se apagam os traços daquilo que é tão sem história sem nenhuma maldade ou inocência? "Isso é o amor?" Desculpe, mas ele não sabia - abre as mãos do vizinho e foge como se desde sempre esperasse por isso, e parte algo que querem fazer parecer com um coração - mas não é.
Beber,  e não é mais do que passar o tempo e ter boas histórias para contar - isso é crescer? - e até que eu quero. Porém, se a Lua me bate nos olhos com aquilo que ela tem de mais roubado do Sol, como quem mostra o grande ardil que faz sustentar toda a pantomima, aí então eu digo e sumo antes de terminar a palavra. Magia antiga guarda a noite e se esconde nos lugares mais inusitados - até no álcool de pior qualidade possível.
Magia antiga impele a decisão que não se toma e sentencia os amantes à camas distintas no mais crepuscular do abraço da luz furtada no reflexo das águas - assim canta o mar revolto. Sair e ser secreto de noite é viver parte da vida de costas no mar, sentido tudo lhe cair de ressaca e de forma brusca; ter todo o sal do mundo a queimar os lábios e não se saciar jamais da dor e daquilo que se sente e não se assume, mesmo que todos vejam o nome no contorcer das feições das mais variadas partes - delírio! E acaba tão rápido e já não importa mais quem se foi antes de que se acorde. Porque.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Filosofia

Ontem eu sonhava que lhe contava tudo
e você nem sabia
Escrevi uns garranchos no escuro para não me esquecer.
Parece-me, às vezes, que o melhor da vida está no limiar da noite,
coberto de sono, enquanto me aproximo do sonho.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Diálogo

É tão bom ser bom quando minhas roupas cheiram à amaciante e o tempo está agradável! É quase como se eu ainda não tivesse deixado de ser criança. Um não sei o que de crueldade no meu calmo vigor - aquela sensação de poder parar o que se está fazendo para tirar um cochilo - e não tirar o cochilo.
Uma moral das creches e das crianças. Paredes sem cal em construção e muita poeira subindo, e eu sou alérgico. Nunca se consegue o que se quer, no fim das contas. Pois sempre se viveu o bastante para lembrar alguma coisa que não se exprime no nosso fora. Pelo contrário, parece pingar do sebo da pele.
E sem querer essa reticência estava anunciada no recuo do que eu já vinha dizendo antes de conversamos. Não, eu tento não falar do meu mais óbvio e do imediato. Senão, eu não acho que eu crio sem antes esquecer.
Posso, às vezes, esquecer dos meus números? Dos meus grupos, dos meus nomes? Não me sinto sufocado. Tenho nojo dos ofegantes pós-modernos pseudo-claustrofóbicos de si mesmos. Gosto da vida, pelo menos um pouco menos do que mim mesmo. Mas se eu não esquecer, acho que eu não crio.
Criar não é escrever, ou pintar, ou compor, ou cantar. Tudo isso é só mentir, e mentiras são ótimas, adoro todas elas, quanto mais refinadas melhor.
Porém, adivinho nos ossos, no que de meu há em rocha, que algo qualquer pode ser trancafiado em algo novo. Certos momentos em que canto ou no próprio sexo mesmo. Vejo que começo a digredir, mas não me psicologize. Precisaríamos de mais de um psicólogo, porque eu já fui muitos.
O café está quase pronto e as frases estão cada vez mais curtas. Já faz tempo que eu te escuto e não te respondo. É que você me conhece tão bem, quase sempre. Que nem uma ladeira que eu subi há muito tempo atrás, por nada. Pode-se dizer que então eu flanava acompanhado.
Eu flanava enquanto quem me acompanhava se lembrava de algo não propriamente esquecido, que ardia na pele viva até queimar. Agora, sem nenhum motivo, isso me vem a cabeça e sinto que crio. Isso não quer dizer que nada disso aconteceu, mas é algo mais, entende?
Acho que se eu não quisesse, me lembraria até dos mais pequenos detalhes e nem inventaria nada, só me recordaria. Não, não me lembro do dia exato, apenas do ano e de que era de tardinha. Saberia reconhecer o lugar e sei até o nome, mas não da rua.
- Você sente pudor? Você me olhou um tanto de lado, como que se isso lhe pesasse mais do que você se desse conta antes de dizê-lo. Não me olha nos olhos há um tempo, desde sempre que nos falamos à tarde na cozinha. Será que já lhe tinha contado a mágica que me toma quando tome cafés em cozinhas alheias? Achei melhor lhe responder.
Sim, é como se uma pessoa pudesse me escutar. Não me importa que não escute, mas eu gostaria de pensar que estamos num jogo, eu e ela. E que não tem nada a ver com ganhar ou perder, mas algo acabaria se eu lhe falasse mais. Prefiro assim.
- O jogo vai acabar algum dia?
O que tinha para acabar já acabou há muito. Por isso é um jogo. Não acaba nunca porque sequer começou. Quem o joga, na verdade, somos eu e você.
- Parece até que há algo de segredo e traição nisso. Acho que você está me enganando... o café acabou.
Não quero mais falar nada.
- Então eu posso falar, enfim. Você não sabe se pontuar muito bem. Não que eu o faça, mas no meu caso não tem muito problema. Sei dar melhor entonação do que você ao que digo, porque não dependo tanto assim de outra pessoa para saber o que eu sinto de mim mesmo.
- Realmente gosto desse frio. Antes de você chegar, separei uns três discos para escutar bebendo um vinho. Você sabe que não sou o tipo de pessoa que faz isso, mas acho que quero brincar de sentir nojo de mim, um pós-moderno asmático, ao menos por hoje. Gosto de frio fora de época.
- Por que você não volta a ler Heidegger? Ou qualquer outra coisa na verdade. Você também parou de dançar. Não que veja uma ligação entre os fatos, mas sinto que algo mudou. É, só dá para um de nós falar de cada vez. Não parece ter outro jeito.
Por favor, continue. Sabe que gosto de te ouvir falando. Poderíamos ficar assim por horas. Mesmo que daqui há pouco eu me fosse embora.
- Você não tem jeito mesmo. Acho que sei agora de quem falava há pouco. Acho você de uma puerilidade adolescente que beira o imperdoável. Você é quase um daqueles acadêmicos esquecíveis que surge no fim-de-século. Tem algo de "quase" e "preguiçoso" em você. Acho que é isso que faz você gostar tanto da vida à noite.
Vou pegar os biscoitos, estou com fome.
- Ótimo, não temos muito tempo até que ele chegue. Não gosto quando vocês se encontram. Ainda mais agora que meu cabelo está grande e fica mais fácil de perceber. Não ria, é uma das fatalidades de minha aparência.
Ele sabe que você não gosta de mulheres, então qual o problema?
- É algo mais, e você sabe disso. Não preciso subir uma ladeira com você (aliás, você já tinha me contado essa história em detalhes, quando ainda era um fato da ordem do dia) para que algo proibido o ameace. Ontem mesmo nós conversamos.
- Estávamos na cama e ele falava de você. Tenho quase certeza de que ele gosta de você. Entende; a situação é mais complicada do que parece.
Entendo perfeitamente. Você parece que quer odiá-lo com todas as suas forças. Será que se você não é capaz de se fazer infeliz como antes, você o forçará a fazê-lo. Não seria amor do contrário. Esse tipo de coisa não vem de outro lugar que não um leito pleno e compartilhado. Você diz que mudou, mas você nunca foi quem você achava que era antes.
Acho que você fracassou. Você está amargando e nós trocamos de lugar. Sinto a minha voz mais forte e sei que te domino agora. Mas isso não se diz, é crasso. Acho esse um som apropriado para mudarmos de assunto. Não quero me intrometer na sua feitiçaria de infelicidade mais do que já fui sem o saber.
Você se lembra do dia em que nossos pais se conheceram por acidente? Foi em algum feriado em que resolvemos ir ao cinema em família. Seu pai sempre foi mais esperto do que a sua mãe e muito mais do que os meus juntos. Lembro-me de que ele me atraiu bastante naquela noite, enquanto jantávamos todos juntos naquela pizzaria.
Eu o via suar enquanto tentava acompanhar nossa conversa, nossas piadas e nossas referências. Ele sentiu o secreto que estava sempre entre nós. Pelo menos até você conhecer o Rodrigo (não, isso já deixou de me incomodar há tempos). Enfim, ele era um homem sensual e inteligente. Sua mãe sempre me deu a impressão de ser uma velha feliz com o seu marido, como quem tem uma vela que queima um fogo manso e assertivo, com tom de conforto.
- Você é de uma fatal deselegância. Gostaria de dizer que isso me fascina, mas não é o caso.
(Se deitaram e beberam vinho, enquanto ouviam música, prestando atenção na sombra das coisas à luz da lâmpada em plena tarde de verão. Um pequeno idílio secreto, uma fuga de nada, um quedar estático - quantas coisas não se dizem ao chegar a uma palavra para elas)

domingo, 1 de janeiro de 2012

Sanctis Januaris

E o cheiro que me faz posse é o de meu sangue vertido pela navalha dos dentes enfileirados em ganas e garras. Osso na carne e não muito mais do que a matemática primeira dos biólogos e dos afetos. Mas é que, às vezes, isso nem sequer parece se gastar. Então eu já não me basto mais.
Então eu já não lhe basto mais. Porquanto eu fora aquele cuja temperança lhe servia de andrajosa muleta, cuja virtude estimada não o era por você menos do que todas as somas dos infindos deleites do palácio - então, eu lhe tinha.
Essa é uma cruel verdade. Aliás, qual a verdade que não se firma com o gravar do fogo na pele queimada? Eu lhe tinha e não o contrário. Quanto tempo eu tive que dormir para poder sonhar que não era assim? Toda uma pré-história que até hoje eu me minto de gulodice - como quem rouba um doce e não quer as calorias; como alguém que só quer roubar algo do mundo; espere. Melhor, como alguém que quer tirar algo que está no mundo e levá-lo ao além desse mesmo mundo, até o seu nunca-mais.
Assim eu roubo tudo que brilha aos meus olhos, até o seu lixo. Eu sempre salivei com o seu mais pequeno, e descartei o que poderia ser visto como o mais precioso - e ainda nem é ano-novo.
Mas, tudo tem um dia em que acontece. Em torrentes, quase uma monção. E não tem muito mais do que as coisas todas acontecendo de uma vez, tão grande que quase não tem tempo para te contar. Porque você vê que os meus olhos tem um espectro de cores foscas e malvas, quase sempre num azul-marinho - mas entender não lhe faculta a magia.
Não que seja algo de grande ou até de bom, mas é. Não que também muitas coisas não sejam, mas a magia que meus olhos não veem em cores é além do mais e menos das outras coisas. É sem terminar, apesar de eu me mentir a certeza de que começou.
Ah, mas você não capta a sutileza das membranas que eu tenho sob a pele dos dedos. A grande rede nervosa de contatos que um estranho me causa no seu soslaio próximo e imberbe de um beijo no escuro - e, às vezes, até as mulheres. Sim, até mesmo isso - só por que não é eu e nem a mágica por ela mesma. Agora, à fórmula, se adenda você. Tem que não ser eu, você ou a mágica para acontecer.
Sobe entre as veias e o ar tudo aquilo que me decepciona, que me inspira, que me relega a um baixo de depressão, que enterra meus pés em areia e terra antigas e fofas - receita para a fertilidade. É quase tudo de graça, no fim das contas, não tem recibo e nem garantia tudo aquilo que recebo de minhas próprias entranhas, mesmo aquilo que me mata e me ganha de volta para mim mesmo.
Tudo isso e menos é o que eu vejo nessa pequena e inocente fagulha mórbida do desejo incessante. De algo que eu não quero e nunca quererei, mas que me alveja de máscaras mil para dardejá-la à noite, como quem dedilhasse as cordas primevas que acordam do sono de morte, o amado de um eterno vesper. Isso dentro da ponta do meu dedo, perdido, traficado num toque elétrico e mecânico. Às vezes, para as paredes de um banheiro, enquanto eu fedo a cigarro e outras drogas.
Mesmo quando eu acordo e o cheiro - ele continua, saiba - e eu ando até o ponto de ônibus - pois, sempre há uma cama para mim em braços amigos que se cambiam como as águas de uma corrente jovem em ânsias de cavar seu desaguar na praia - e sei que me olham como estranho e invisível. E rio em vitória da impossibilidade da minha redenção como quem se risse de uma piada horrível e infeliz - como a castidade.
Sei que se pudesse, eu preferiria falar em enigmas, mas a mensagem em meu discurso segue reta em sua opinião até o alvo tencionado. A dor é mancha clara num alto-relevo da pele! Inexpugnável, pois não é espelho - é qualquer coisa de través que não nos faz dizer "Não" quando seria desejável. Há sempre um pouco na dor que é lascivo, mesmo que muito pouco, pois é ancestral e, portanto, o que há de mais emergente em nossos rostos, assim como o são as rugas dos risos inocentes da infância, as mais estampadas nos rostos velhos e cansados de um jovem burocrata.
O trânsito crepuscular do ano findo é breve e engarrafado: será aquilo, até que pare de se vomitar. Algo como um pequeno desagrado. Mas o que é isso para aqueles, que como nós, podem muito mais? Será que nós riríamos da plateia, se ela fosse possível? Não, mais até que isso. Agora é outra hora, e pede da noite um movimento outro, e vem a fuga.
Uma gota presa na boca da minha alma, água suja e envenenada que a física impede que caía. Verter é para as grandes chuvas que iniciam os tempos. O que tenho é uma ressaca de ano-velho e as mãos nuas. Sacolas vazias e palmas desfraldadas de Santa Ritas nas ruas de Copacabana - entende-me quando falo que, às vezes, tudo acaba e não é mais do que muita coisa?
O que tenho não é entulho emocional, apesar de não ter mais medo do que é feio e troncho em mim, como se adivinhasse a velhice decadente que se precipita em mim quando engordo, ou quando meu cabelo se quebra em um fio nas suas mãos, tão macias.
Quero mãos ásperas, quero ser imolado, eu quero sexo e quero ser de um deus. Desses que surgem de noite e cobram sacrifícios em sangue negro e traficado no revés do coração e do carbono. Alguém, que não alguém, para me dar a máscara na qual o meu rosto pode enfim crescer, até que não-mais.
Pode haver em mais de uma noite em fuga, mais amor do que em uma cascata de gestos despropositados e sem sentido. E eu sou um daqueles que os conhece e os deseja mais do que ninguém-outro-predador -
- Vejo o meu rosto na água furtada das rosas na calçada e na face da Lua. E mesmo quando acordo do seu lado, eu não sei até mais onde eu posso. Até que eu penso que eu corro, e o dia ainda começa com o meu café e o meu pão. Eu não envelheço, mas alguma coisa em mim vai ficando sedimentada. Eu me torno a música que eu cantei há muito tempo atrás antes de toda a vida de mim agora.