sábado, 14 de janeiro de 2012

Noite II

É isso - estar na rua, de noite, e sentir uma música que toca só para os seus ouvidos, que só penetra pelos pontos abertos mais obscuros do seu corpo - é o amor.
Que não tem nome e forma, mas que pulsa antes do sexo e depois do gozo! Sim, e as luzes brilham enquanto os ônibus passam de quarto em quarto de hora - como se o dia não acabasse e tudo passa por mim como em círculos.
Mas falo demais. Se me escutasse mais do que me vejo, logo desgostaria disso tudo. Porém, aqueles que são dados aos arrebates, por que não cantar a glória aspergida pelos dedos finos e longos da abençoada noite! Que se cubra os juízos pequenos dos homens e que de um amor só se façam vários como se nada tivesse uma casa para retornar - porque eu posso sentir que essa noite não termina nem quando eu durmo do seu lado e estamos depois do juntos.
Quando vejo passaram por mim os homens e mulheres solitários e os casais de mãos dadas - eu os sei todos sedentos - sinto no imo de cada pelo a cobrir minha pele corada, que temos sede e que queremos beber o sal das pedras, quase como se isso fosse o tudo da vida. Mas o que é o tudo, isso não se pode perguntar, porque é como pedir para que lhe ensinem a fazer amor -
Pois é nessas horas que o que há de mais tolos em nós ganha cores de pássaros e asas, e cada palavra dardeja além da tolice de quem as fala - amor e dinheiro se ganham na noite e ninguém tem que saber muito disso - e pedir um pouco mais pode ser crime ou não: depende de quem o faz.
No verão, a chuva vem e caí rápida, mas nem por isso se sai da rua ou se para de amar. No calor da torrente, enquanto ribombam os raios lá fora, e amantes acusam suas más contrapartes, alguém, por mais insuspeito que se finja, pode tropeçar no segredo e na comédia, basta uma dose inexata de bom senso.
Ver tudo isso e sentir na ponta das unhas a música primeira de toda a sua vida, como se não fosse nada, como se valesse menos do que o beijo que só se dá à noite dos que não vivem de dia, isso é o bálsamo, a grande panacéia, basta que para isso não se tenha problemas - a cura para os sãos: não, não é a famigerada vida eterna ou o saber do nome das coisas; espero estar entre iguais que adivinham a noite no mais grotesco e disforme da graça, tal é a brisa que guia seus pés e os fazem certos na penumbra, é um santo que peca, e nos salva ao nos jogar no grande abismo.
Não temer a queda - por mais que seja mais do que isso - talvez, não cumprir quesito nenhum... sim! Suspender em plena ação toda a distância negativa do puro espectador e fazer de tudo boca, pés, mãos, narizes e ouvidos, senão em busca, ao menos despertos aos chamados mais insidiosos e inefáveis - não os da carne, mas de algo que é vário e não é espírito; sim, que é sim e é mais difícil por ser fácil.
Se a travessia acaba não é por mal. Assim como qualquer condicional é incapaz de exprimir plena pena para quem dança como quem se vinga do frio e do calor, como quem excomunga os deuses e vive da luz. Traços rápidos e secretos por discrição são por eles desferidos. Surge o não-mais, mas só como fantasmagoria de uma vida passada - o que pode valer por anos ou por dias. Precisar demais as coisas é de uma vulgaridade de amadores, mas se permitir um melhor destino pode ser de um refino implícito e incalculável, isto é, algo de imprevisto que denuncia o favor da vida e das deidades do deleite.
Pergunte à irmã que dança sobre o túmulo das injustiças passadas e veja como reverbera nela o crispar de toda uma força em contagio de si mesma. Que música é aquela que contrai seus músculos e lhe imprime um som tão claro e puro? Nada mais do que qualquer outra coisa mesquinha e suja, que qualquer vadia consegue numa dose de vodka.
Música e dança como se fossemos algo além de um só - além do um só - e que concede a marcha como um dom da tarde em plena madrugada, como se o atraso fosse algo de tântrico e já pressentido - uma marca, que empolga os pés num compasso, tal qual uma corrente invisível, que se escuta no tilintar dos seus elos - sim, a música.
Então, o amante desenganado parte para o meio de tudo, como se nunca estivesse no calor daquele fora que era o dentro de uma coisa privada e pequena. Como um pássaro preso em mãos de amor e de expressa beleza. Que sabe um pássaro das coisas dos homens? Que sabe aqueles que voam da cadência dos pés na terra? Oh, mas se plana baixo demais às vezes, o bastante para se duvidar da certeza do céu e até da própria poeira do chão - por que se apagam os traços daquilo que é tão sem história sem nenhuma maldade ou inocência? "Isso é o amor?" Desculpe, mas ele não sabia - abre as mãos do vizinho e foge como se desde sempre esperasse por isso, e parte algo que querem fazer parecer com um coração - mas não é.
Beber,  e não é mais do que passar o tempo e ter boas histórias para contar - isso é crescer? - e até que eu quero. Porém, se a Lua me bate nos olhos com aquilo que ela tem de mais roubado do Sol, como quem mostra o grande ardil que faz sustentar toda a pantomima, aí então eu digo e sumo antes de terminar a palavra. Magia antiga guarda a noite e se esconde nos lugares mais inusitados - até no álcool de pior qualidade possível.
Magia antiga impele a decisão que não se toma e sentencia os amantes à camas distintas no mais crepuscular do abraço da luz furtada no reflexo das águas - assim canta o mar revolto. Sair e ser secreto de noite é viver parte da vida de costas no mar, sentido tudo lhe cair de ressaca e de forma brusca; ter todo o sal do mundo a queimar os lábios e não se saciar jamais da dor e daquilo que se sente e não se assume, mesmo que todos vejam o nome no contorcer das feições das mais variadas partes - delírio! E acaba tão rápido e já não importa mais quem se foi antes de que se acorde. Porque.

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