quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Ano novo

Podem as paredes tombarem
e ser logo agora a hora má
de todos os sonhos bons?

Se digo sim, eu entro em brumas
que não me trazem as conchas
que as águas levam por debaixo
de meus pés salgados
Vislumbro o espesso nevoeiro;
promontório das dúvidas de granito
- vem o novo ano! vem o novo ano!

mas assim dizem todos os segundos
e dizem todos sem jamais desdizer
a ladainha que me trouxe até aqui
só para eu não te ter de volta
- vou sozinho embora

sábado, 8 de dezembro de 2012

Candlebright

Quando eu for me embora dessas paragens
deixarei um bilhete anônimo e esquecido
para um insolente deus com quem partilhei
o lado fresco e novo do travesseiro por todas
as noites do meu terceiro ano bissexto desde
a minha última conversão aos temperos indigestos
da moral e dos costumes revoltantes do que é hodierno

"Perdão, meu bom amigo de pragas e maldições,
mas você é minha oferenda ao grande diabo que
assombra a soleira de minha porta: afetaste teus ares
de bonachão por mais tempo do que devido.
Assino como aprendiz do erótico mais sutil que
me legaste na manhã da antevéspera"

Sempre quis pra mim, a alegria de sacrificar
um amante, por mais fantástico que o fosse,
a algo menor do que o sabor de um vento morno
na manhã de um dia que só prometa
o afago abafado de um sol em forno

Um outro homem

Que outro homem no mundo
que não seja meu pai?
que não seja um seu amigo,
que não lhe dispute a mulher
e, por que não, também o filho?

Um outro homem, sem a marca
indelével e eterna, pré-cambriana,
de um mundo o qual não o meu
jamais poderia ser?

Apenas um homem sem história
que eu jamais tenha visto
com um corpo para sempre intocado
inédito e por mim inexplorado
quem sabe, talvez, o meu filho?

Pequena dionisíaca

Quando eu sorri com o sangue de meu pai nas mãos
e as entranhas espalhadas no chão de minha mãe,
sorri fausto e pródigo, pois havia redimido esse
triste mundo de sujeiras burguesas e cantos abafados
dos meus ancestrais antepassados: quis matar
os homens ante-diluvianos, para melhor deitar
com os gigantes bíblicos de argila, extraviados,
como todos o sabem, com Ariadne em Naxos

II

Não confie na noite de quem vai embora
na ponta dos pés, sem levantar o pó

os dias conhecem os seus trabalhos todos
e o bom do amor fica apesar de um desenlace

terça-feira, 20 de novembro de 2012

I

"Algo pueril, bem pequeno e doce
que eu cultive com candura"

Mas eu sempre soube do preço das coisas
e roubo daqueles que amo, o prazer
de todos os meus momentos perfeitos

Que me agastem, que me firam, que me odeiem
- Não é com isso que eu saio nas mãos quando vou embora e para casa. Quando fecho as janelas, durmo tranquilo e convalesço. Não sabem meus amantes e amigos o mal que lhes faço todos os dias, só por existir.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

G.H.

Toda a minha casa está à mercê de criaturas sujas e invisiveis
perdido do mundo dos homens, crio mitos e cavernas
regras transcendentes guiam meus passos e me dizem aonde posso pisar
meu gato me segue, seus olhos me valem, pois ele vê das coisas
aquilo que tira à imaculada concepção sua realidade

destituído o lar de sua segurança, tenho uma toca suja
por onde passam os córregos dos subterrâneos das paredes
e de todos os fantasmas e das loucuras que terminaram por me ser
quando eu me perder de minhas roupas e de meus panos de gente

domingo, 14 de outubro de 2012

Sonho recorrente

Antigamente, me doía mais
agora, só vem o tédio e o nojo
Minha tristeza perdeu
todo o prazer de sua prática
Quantos dias e nuvens
choveram nas minhas noites
desde então? Que eu não temo mais
o desconforto da chegada da manhã

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Velhos hábitos me acossam numa noite quente,
sentir-se jovem é um preço que os ossos pesam
em balanças ocultas de praças por ora desertas,

Mas algo persiste por entre as velhas estradas,
caminhos reais perdidos entre fantasmas fantásticos
afoita, a alma pequena que por tais sendas envereda
sente na pele fina, o risco de tropeçar em algo santo
relíquia de um anônimo demônio cruel e sem rosto

A noite bifurca as cordas que sustentam a pequena máquina,
desemparada, ela se escora naquilo que já não lhe rodeia,
até que, por fim, ela cai, perfeita a transição ofegante
entre o ocaso e a primeva badalada de uma vida que escorre

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Beautiful Child

E quando ele viu que não ser mais criança
era saber que ainda poderia sê-lo de noite
dentro do coração próprio se abrindo
na púrpura do mistério de outro
ele sorriu e foi embora mais uma vez
e duas vezes cruzou os lados do espelho
quebrando, assim, o encanto de si mesmo
por milênios de histórias repetidas
Descobriu a liberdade e foi mau com ela
Amou pouco, raro e como ninguém mais
o viu, ele amou sempre sozinho


Canção de ninar

Eu faço meu amor dormir
como uma velha cantilena de abril
meu amor e seu sono me expulsam
com boa consciência e sonhos
dos quais eu não tomo parte
as sereias da noite, se confundem
com as sirenes ambulantes
e eu passo rápido como um raio
e a vida dele passa longe, como
um caminho nas estrelas rosas
que cantam as cores do meu canto

Boa noite, amor. Não dorme o amado
só o amante - teu sono é por mim roubado
da sua vida, resta a cinza - meu crime
por ti somente é cantado no olvido dos anos
anjo renegado eu voo longe em crinas de fogo
todo o calor do mundo para aplacar uma
paixão antiga e perdida, que eu vivo de noite
quando todos você são um só e ela são vários
Meu canto anima e dispersa o que de pequeno há
nas crueldades anônimas do amor dos jovens e brutos


domingo, 2 de setembro de 2012

Superstar

Quantas palavras mais, doces, me falaria
este homem que me é tão desconhecido?
Debruçado em seu corpo, tudo que quero
é o seu real e derradeiro amor de toda a vida

Palavras gentis que sua pele me revela
na pressa da madrugada que finda
que me matam de um prazer sofrido
apertando os nós soltos de minha garganta

Afável, eu lhe revido, em ganas de afãs furiosos
cantados no meu silêncio, o olhar plácido
Desejoso de seu prazer na minha proeza,
- regalo ocioso - eu relego meu gozo

- E eu o amo mais do que todos os outros; sem nem saber seu nome, apenas seu endereço. Conheço os cantos do chão nos seus vértices com o colchão. Sei de toda uma história impossível no seu coração. Tenho a consciência boa de quem faz seu amor dormir.

domingo, 19 de agosto de 2012

Stories from the city

Tinha acabado de sair pela portaria, cumprimentando timidamente o porteiro, um homem pequeno e de tez rosada, cujos olhos atenciosos, num rápido dislumbre, lhe revelaram um caduco interesse, já tão prontamente rechaçado - e sentia o frio da noite abafado pelo calor do corpo outrora convulso. Sua pulsão agora era a de uma meia noite de pressa nas ruas de parcos transeuntes também um pouco afetados em suas perdas.
Seu rosto ainda estava avermelhado e sua camisa aderia levemente à sua barriga. Resolveu que compraria algo para comer em casa. As incursões noturnas pela vizinhança tinham justamente esse apelo. Cruzar as ruas da primeira infância envolto na púrpura secreta de mistérios que sequer ele poderia ter imaginado na boa parte de sua existência breve e anônima.
Não era qualquer sentimentalice que o aturdia no interim. Seu fortuito companheiro não o fez gozar - o que já bastaria por um mundo de maus humores e travéses. "Nem teve a decência de me comer". Ao menos, era um desses que embarca nos seus próprios delírios de virilidade em flertes com truculência - talvez a crescente psicologização do sexo tivesse suas benesses. Não, ele não fingia, ou era forçado a algo do qual não queria ter parte, ou desejava que o fizessem. Era apenas uma maneira agradável de encetar as práticas às quais era mais dado.
Mas ele mentia. Mesmo que não quisesse. Tantas juras, tantas promessas, tantas palavras lidas e cantadas e ouvidas para tão pouco - para menos do que o gozo de uma putinha. Já com a comida em mãos, ele pensava, atravessando os sinais roubando batatas fritas do saco engordurado (esse cheiro de gordura trans ele o associava à infância, mais do que qualquer Natal ou aniversário jamais o poderiam ser - burguês, ele sabia que algum deus perdido dos índios de sua terra apreciaria a aparente contradição dos perfumes da corrupção mais torpe sobre um corpo ainda novo - pereceria ele e os de sua raça pela graça de um nariz suicida?), na sua família a dormir um sono de horário comercial e vinhetas opiáceas. Ah, eles viveram uma era de ouro, com seus ídolos, suas tradições e suas lutas. Ele apenas sabia chupar um pau muito bem.
Aguardava o amor de um menino qualquer. O menino, por razões que lhe eram desconhecidas, gostava dele de uma maneira adocicada e morna de juventude - muito bem criado, ele sabia que qualquer declaração de amor enquanto se é sustentado pelos pais vale de muito pouco e revela uma inclinação, no mínimo, duvidosa para todas as boas coisas de uma vida aceitável. Mas lhe agradava, ainda assim, pensar no seu distante amor e em dizer que o amava e que sentia sua falta. Porque o sentia todo de fato.
Mas se guiar - saberiam os incompetentes funcionários do turno da noite do fast food, que toda uma civilização pode ser repensada no espaço tão-burocrático de uma fila? - pelo que se sentia é falho. Gostar de algo não o valida e vice-versa. Então mentia e pensava que seria feliz.
Haviam provações ainda assim. Uma vez, sentiu que se apaixonaria pela educação provinciana de uma boa foda vizinha. Porque era bom pensar nele e lhe imaginar um sorriso - estava escuro e ele não se lembrava de sua boca; não é porque se beija que se retém ou que se interessa pela figura da boca alheia - um sorriso que se voltava para uma consideração intempestiva e idílica qualquer.
Quem sabia de seu coração naquelas madrugadas? Seria realmente seu coração o melhor árbitro de sua condição? Não, diria ele que seu baixo ventre era mais certeiro. Sua única baixeza lhe era facultada pela terna embriaguez sedenta de tempo distante de criança. O desejo nunca lhe pesou além de questões pragmáticas locais - ele só se abria à suas musas distantes.
Por mais que sua alma pudesse se contorcer nos lamentos mais externos a lhe aspergir a pele suada, eram as sentenças gravadas e estrangeiras - um passado e um longe mentidos e revividos - que lhe faziam palestra no regresso ao lar. "Se eu comer agora, vai passar o tesão - me masturbo mais tarde". Suas reflexões eram suas, marcadas em carbono ancestral e sem nome - milagre em tempos cheios de letras e números. Cada partícula de seu ser meditava e trabalhava vidas inventadas daquelas mulheres hostis e harpias. O que não fosse uma canção não lhe servia nessas horas. Seu dote musical - fado fracassado nas habilidades mais técnicas e motoras - se expressava na excelência de seu ouvido para liturgias, mnemônica dos recitativos ocultos - literatura de catacumba e eco lhe dotava de filosofia simples e certeira.
Um amor, um homem para cobiçar, dominar e lhe fazer enciumar. Sua grande fantasia - e sua grande fonte de escárnio para consigo mesmo. Pensou algumas horas depois de ocorrida a digestão (suas artérias já propriamente entupidas), "uma pessoa que curte ser chamada de piranha por uma foda meia boca não pode ser critério de coisa alguma".
Dormiu com uma mensagem não respondida no celular. A do menino próximo que ele reputava fagulhas de paixão adolescente. Mas ele ainda era uma criança, e achava que não deveria sair de casa mais de uma vez por noite. Sistemas sempre aliviam consciências preguiçosas ciosas de gozo fácil.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Meio dia na minha cama

Me vem tão calma agora a sua lembrança
é só meio dia e não tenho porque ter pressa,
mas pensar que já lhe quis tão dentro de mim
e que ansiei com quieto e reticente desprezo
por mim e pelo seu, nossos encontros fortuitos
de cúmplices na noite - para hoje lhe dar lugar
nas primeiras luzes da tarde - e pensar no quanto
já verti por mim e por você, de inconfessado
e mudo pranto, por toda uma geração de homens
nascidos do pó e do vento a revolver, terríveis
- mas essa é a hora má em que as sombras caem -
na cama que já eu quis ser tão somente nossa.

domingo, 29 de julho de 2012

Dancing Barefoot

Um particular pendor
para dar novos rostos
às solidões que me vem
nas febres dos dia tão certos
no fim de outras noites

- E a quieta satisfação de dar às costas ao que resta de você depois de cada pequena crueldade que pinto vermelha e viva no meu corpo. Ser tão mais bruxo quanto mais em cores queimar o fim das noites e das maldades sem pecado da juventude -

A reticência da suspensão,
da virgem afoita no mosteiro -
que são todas aquelas opacas
graças perdidas no meio da vida

terça-feira, 24 de julho de 2012

Ainda de través,
um amor em mim
se mexia e mexia
sem que eu dissesse,
por mais que quissesse,
o nome dele ou ele o meu


Só me restava partir, então,
para perfazer do amor
a sua suma benção
do coração perfilado.
(a traição anônima
do artesão em ofício)

Assim cantam as musas desgraçadas
das ruas sujas; canções que não passam
de hálito quente do asfalto -
mas que homem nas minhas mãos,
não é apenas o afeto cálido?
dos ventos abafados das ruas da minha cidade


sábado, 21 de julho de 2012

Eu desci por suas escadas.
Comigo, carregava minhas músicas,
minhas máximas, meus segredos,
todos em mim abertos no sol,
A púrpura que me cobria finalizava
a liturgia dos meus primeiros dias.
Sozinho, eu fazia da minha juventude
uma reza discreta e de soslaios.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Conversation piece

Mesquinha burguesia afetiva
que pinta seus homens e mulheres
loucos nas minhas paredes.
A febre das formigas em peste
vence os limites privados da casa,
a primeira tragédia vista dos divãs;
"Agora sou cal", besta de ossos
e da clareza do seu próprio veneno

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Cinema frânces (coisas que eu não entendo)

Ainda serei mau assim
com meus ingênuos e ternos amantes:
um dia, o telefone tocaria.
Do outro lado, o primeiro entre os homens,
e sem me sujar de sangue, eu sairia da cama,
da traição que antecede o próprio ato

Se eu fosse Catherine Deneuve
eu poderia falar "eu te amo"
para qualquer um que me comesse
(passavelmente que o fosse)
e ninguém reclamaria disso.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Aerial II

Quando encurta a sombra
e todos os amantes são um só,
no coro negro do bando todo
pássaros grasnando terríveis
presságios da ordem da cama
e os segredos de lençol e traves-
seiro. Para começar algo novo,
mata-se a noite em que se deita
e tem-se algo outro num só cor-
po maciço e antigo.O céu é sem-
fim em mel e as asas pretas caem
sobre mim, sacrifício feliz e pronto
ao deuses perdidos de outrora.
O rito esquecido se perfaz ao cair
do meu sangue enegrecido e do
tilintar dos meus pobres ossos,
que ao fim do meu amor, são tudo
que de mim resta, nos ecos de uma
escuridão que já passou sua sombra
pela minha cabeça mais vezes do que
o sol de uma clara manhã de verão

segunda-feira, 25 de junho de 2012

O Inocente

Agora eu serei mais mentiroso:
o trato pequeno com os sentimentos
é o crime inaudito da gentinha,
a constância de uma bela face
é o olvido oportuno de um amor maior

Por fim, quanto mais falso eu for
por quantos mais aros de circo
minhas palavras tiveram que saltar
mais me salgo nos mares de Circe -
minha consciência e astúcia serão
fadas gordas e infantis mequetrefes

Enfim, poder amar breve os raros homens
que suscitam no horizonte de minha juventude
 a camada fina de glória que começa os dias frios
do trabalho e do esforço malogrado que não serão meus
enquanto queimo a língua num café barato,
à espera de um encontro com a minha tão desejável Queda

domingo, 24 de junho de 2012

Elisa, vida mia

Papai não gosta quando as pessoas na rua me cumprimentam. As pessoas são homens e passam rápido - ele não os vê direito e não sabe mais ver nos meus olhos o que eu quero. Eu pacientemente explico a conexão e a desnudo daquilo que nela ele pôs de maneira indevida, quando por tais homens meu corpo passou sem mácula no contato.
- Ah, papai! Quando é verdade que ninguém me toca? Soubesse mais ele do amor, ele me veria no jogo de amante, o qual eu só sei encetar quando nele eu me insiro de troça e crueldade - quando eu caso e paro minha vida por exemplo, só para saber o gosto. Às vezes penso que meu pai só me faz chorar porque ele me trata como uma de suas amantes anônimas do passado - não tem como ter pai sem se pensar como o rebento oportuno de uma feita da qual ele se arrepende; por ele mesmo, ele nunca teria tido um filho como eu.
E depois de tudo eu descubro que ele me ama e que eu o traio com o mundo todo. Descubro que todos os homens transam com o filho de meu pai e de mais ninguém. Só que eu nunca estou lá!
(Eu não posso fazer isso por ele - lhe dar a glória de viver eterno no ciclo dos homens que passam rápido e roubam de outros homens o amor de sua prole)
Não que eu seja frígido, mas os homens nunca precisaram de muito coisa para amar. Eu sei porque também não deixo de ser um deles, e mesmo assim, papai quer me matar apaixonado com seu amor de monge, que se abrasa e consome no toque que não se dá, mas que ele ensaia com os mais ternos movimentos - porque depois de pai, papai não transa mais - só se relembra dos tempos em que era da minha idade e que poderia me odiar acaso cruzasse comigo pelas ruas, assim como os homens dos quais hoje ele sente ciúme quando me olham com o carinho de uma foda passada.
Por pequenos truques que aprendo das almas de amantes furtadas, escondo-me nas trevas pequenas de um quarto em apartamento. Meu rosto é escuro e à condução do espelho se revela que esta nas mãos o toque enegrecido do tempo convertido em carne. Olho calmo para a mão aberrante e negra de carbonização indolor.
- Queimou há mais tempo do que a minha primeira loucura de ciúmes. Quando pensei que não era bonito para papai. Que ele nunca me olharia do jeito que os homens que me ignoram me olhariam se o fizessem alguma vez - isso seria uma libertação.
(Mas eu não sou essa pessoa porque minhas mãos são todas brancas e macias ao toque e sabem fingir que obedecem ao comando da voz antiga. Eu minto, minto e minto e morro mais uma vez do que eu precisaria se fosse honesto. Mas eu quero uma vingança maior do que papai e seu amor velho de arrependimento e de mundo). Quero ir até atrás do espelho e ver o deus pequeno do caos do dia à dia.
Quero ir até lá e não sair dos seus olhos misteriosos e ocos, aqueles olhos de vaca que pregados em Hera dão aos gregos o elogio que nunca foi feito às mulheres (pois que elas não o mereceram de fato - não como eu e meu demônio-esposo primeiro). Sentir na sua divina imaterialidade o calor dos amores que escorrem por minha boca sem o profanar da cerimônia. Ver crescer os cornos do diabo de todos os cristos que morrem patéticos pelas ruas sujas de toda terra santa do pequeno homem sujo que meu pai teme me comer em sua cama, quando ele sai para trabalhar.
E eu amo meu pai, da maneira porca que se ama um homem que morre para os segredos do amor, quando só então eles se fariam disponíveis! Com pena e satisfação! Quando é por ritos muito mais antigos e violentos que invoco no reboco das paredes de meu quarto, as assombrações mais viris de um mundo apagado que se adivinha nos espelhos das artes divinatórias. Que me levem para seus infernos e me matem de tédio e asco, que afoguem minha dignidade nos córregos mais sujos e que eu saia de lá meio morto, sem poder saber o que é respeitar outro homem - muito menos outra vida.
Oh, papai! Custa-me dizer isso, mas não lhe tenho em pensamentos quando um homem goza dentro de mim. Quando engano os homens, não lhe engano - pois quero lhe trair sempre com a leveza de quem não sabe ironizar. Sou sincero, mas isso não convém a cama, por isso, jamais lhe convido ao meu leito.
Por ora, venci os meus maiores escuros e noites de infância e sinto-me morto. Como se eu esperasse alguma coisa. Mas meus ossos quebrariam todos ao meio peso de uma mentira inacabada - a de que eu preciso de você. Porque eu firmei meu caminho tão sozinho de mundo e vida, que mesmo agora, sem nada, nada eu sei que você pode me dar. Porque eu reneguei seu amor muito antes de saber que o teria de fazer em algum momento.
Porque eu odiei minha mãe antes de te odiar. Porque eu a traí muito antes de tudo e jamais a perdoarei. Porque eu terei todos os homens do mundo antes dela e os ofertarei, em lembrança, aos mais altos sacrifícios que minha irrestrita fé no absurdo do deus cego e bovino permite. Deitarei homens em pasto para o meu plano mestre de infância tenra e olvidada sobre as dobras dos lençóis. Levei a vingança ao seu próprio nó e a devorei no meio do caminho - para quê? Para que mesmo a própria pergunta, se eu aprendi com os deuses ruminantes que nada vale a pena ser perguntado se não para enganar um terceiro - em seus olhos vazios aprendi que o sentir mais primitivo já é a enganação maior que se faz ao viver e que para tanto é preciso parasitar uma fêmea vazia prenha das memórias moribundas de um amor afoito e adolescente, por mais de nove meses e pagar o preço por isso, tendo que viver num regime de amor e família, quando tudo que se tem são dentes e unhas pequenas e inúteis que requerem uma finesse de crueldade, que não se ensina nas escolas, para serem bem empregados.
Mas matar os deuses não é algo que faz quando se tem fome ou frio. É preciso ser mesmo sagrado em sua fúria para poder banhar-se em seu sangue e colidir um paraíso com os cumes indignos da Terra e andar ateu pelo que restar.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Não pode ter mais do que isso num só momento. Um pequeno furto, ninho de pensamentos roubados para o meu consolo instantâneo - passando apressados como senhoras metodistas de algum lugar ermo no coração velho da cidade.
Testar a precisão das pontas afiadas do corpo na própria carne uma vez mais - há regojizo onde se pode exclamar a existência em sangue e esgar de cego e de voz. Este é um lugar mesquinho, mas para mim é secreto e duro em riquezas. Um santuário cujos patronos são o meu certeiro descaso e incurável juventude, filhos bastardos de outros maiores pecados meus.
- Eu não quero me sentir bem. Isso não é pouco ou muito - é além do desejo e da sorte. Mas não me cai bem.
Não me veste bem o disfarce de algo doce e calmo, pois que anseio pela superficialidade horizontal de um pequeno córrego, que o fluxo das ruas um dia haverá de enterrar vivo. O que de ignominioso aguarda nas fileiras secas da areia e do pó, decantado decalque desbotado de todos os tempos ainda não toados?
Algo do qual não ouso suspeitar ou adivinhar - um pressentimento é um arrepio patológico crônico nas cabeças tortas das crianças - que não pode se aproximar de mim sem que eu viva tudo aquilo de novo e setenta vezes sete vezes outras (sempre mais uma e nenhuma a mais de cada vez). E agora, saber doer nos ossos aquilo que há de bom e dourado dos dias e dos ventos felizes da tarde.
Mas saber esperar é algo que eu não sei. Há muito de idiotia e infantilidade no meu habitar-em-mim das horas todas da vida - não é algo que se ensine ao rosto, como não corar perante à infalível prova? porque matematizo, tenaz, as dobras dos meus dedos e juntos de um a um, sem pressa nenhuma; cercado e secreto por um véu de fantasmas invisíveis que se parecem com os irmãos e amantes que nunca tive.
Voltar ao outro e primeiro lado de mim, como se eu nunca tivesse sempre já nele estado, mesmo porque o mundo é tão sempre muito maior e isso assusta, porque é igualmente bom por isso. Visitar-me e sentar desconfartável na mobília velha e desgastada - severa - em tons fechados que roubam a luz dos olhos que lhes assentam. Opaco; um grito de surdo-mudo ao fundo. Ocaso das cores e dos dias. Restam aos meus pés, as horas infindáveis da morte já anunciada - inescapável batalhão que eu me sou quando da minha fatal execução por traição - morro a morte dos loucos que riem do deus por ignorância e maldade.
(em sonho invoco a dádiva primeira da fome e do querer-tomar-roubar do mundo. mas não é no sonho que vivo a exegêse de um erro eternamente prolongado - a vida em cores da história não contada do que vive além dos dias e sem o tempo em cinzas apagadas do cigarro primordial da negligência balzaquiana da vida burguesa)
- Ah, mas às vezes os dias são tão bonitos e parece que todos com que eu cruzo na rua, me sorriem de volta, tão ternos e gentis. É besteira pensar que as gentes podem falar alguma coisa do que acontece dentro de alguém que é sujo e poluído como todos os rios o são de vida. Um segredo comum dos homens os previne de escarar a falta de decoro que são as emoções mais complexas e sofridas de nossos edifícios mais altos e de granito mais antigo.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Leito

Tivessem os grandes pensadores do mundo,
um pouco mais de malícia -
talvez, uma amante um tanto mais instigante -
teriam sabido desafiar nos homens
aquilo que lhes fazem crianças na noite

- Na cama, aguardam deleites e pesadelos
o problema não é que um leve ao outro
que porta não leva à outra porta -
diz quem sabe ver, suicida, pelos vidros -
mas sim, que será maior do que tudo
que já se viveu e se guardou num canto.

domingo, 6 de maio de 2012

Under the Ivy

Algo de jardim e flores - não me lembro. Mais que o bastante é a falta marcada no marfim das teclas que minhas palavras jamais tocam. E aí há você.
Quanto eu não sofri até lhe entender em todo seu espectro! Agora que sei - tudo isso vai embora? Meus escritos apócrifos se despem de todas as suas peles mortas e podem enfim rastejar livres?
Ah, por que amor e desamor são apenas pausas? Suspenso, eu adivinho os vértices das colunas que me sustentam a queda inibida. Um nó singelo que encompassa todos os nós de uma alma que vibra a cadência de muitos outros pequenos fogos-fátuos esquecidos do mundo outrora em névoa encoberto.
Há calma e não há gozo quando você se ausenta. Tenho que me guiar sem ser por esse prazer, pois acho que não te quererei nunca mais. Até que o nunca mais vem e eu nem me permito achar que pudesse não suspeitar disso.
Arcadas marcam em mármore todas as passagens. A cerca viva se retorce sob meus pés - talvez já eu não saiba do chão - mas o dia brilha em algum horizonte naufragado nesta ilha deserta. Desolado, sigo o caminho que os pés entorpecidos ditam às mãos ensanguentadas para perseverarem em conjunto. Rastejo com a graça certa de quem se livrou de um peso e aceita ser Sísifo em suas noites num soslaio anímico passível de repreensão por sua infantilidade.
Mas não se admoestam mais os perpetradores da invasão anterior ao tempo das rosas. O mar se ergue estanque sobre a minha cabeça e o sal é tudo que sente minha pele ardente pelo sol inclemente. Chove e ainda não acho aquela, das portas, a mais especial.
Secreto, insisto nos erros de sempre, nos erros de outrora, em toda a dança encorpada dos ritmos letárgicos de um ritual ancestral. Emerge, nas agruras dos presentes, o eco passado de geração à geração de refugiados perdidos das nuvens.
As nuvens encombrem o próprio mar a chover. Algum anjo meu faz nuvens o dia todo e eu o amo. Dito isso, sinto dissolver sob o abdômen fustigado pelas vinhas e espinhos do labirinto todo contato com alguma segurança que a dor me garantia até então. Eu já não sei mais para aonde eu vou depois daqui, depois de agora.
A ânsia, o espinho primordial, o parasita que desde sempre carreguei no peito, minha doença crônica, minha bronquite, meu soluço na meia noite - se me despeço é em pedaços apartados. Algo muda e tem que se continuar como quem muda de cores e oculta nas sombras do dia e da luz o que todos disfarçam pelo cotidiano de um olhar mais demorado. Demora, e tudo que eu tenho é tempo e pó para me erguer de novo.
Pó sobre as rosas sob os meus pés. Cheguei à câmara mais eterna e passei por debaixo da hera mágica - minha hejira derradeira, na qual derramo em ressaca a minha dor dormente.
Quiseram os músculos perderem nas carnes a cor, e os olhos, o brilho, tal qual o cabelo, o fulgor - mas havia ainda algo que resistiu por todo esse tempo... e sou criança de novo. Brinco no jardim, e tudo vai se acabando antes mesmo dos meus olhos se porem, à perda, contemplar. Tempo se esvai no vento e embalo no coração uma doce e cerrilhada melodia. Tudo me falta e vai se perdendo na rouquidão dos que gritam no silêncio opressor dos anos e das noites. Uma madrugada fatídica é o que falta para tudo se acabar de uma história que não se conta jamais em palavras. A esperança que resta aos meus sonhos é que eles escapem como gás de cozinha assassino pelo branco das curvas internas das letras que os ocultam aos lhes darem forma e sentido.
Plano mestre da música tácita do sexo. Ninguém daçou comigo que eu não pudesse esquecer frente ao seus olhos sem luz e matéria. Invisível, inantigível, você permanece um amor cúpido a tecer nas nuvens as mortalhas dos meus amores, enquanto eu lhe persigo, insígne, pelos recantos de um labirinto antigo, sem voltar às vistas a todas as pequenas maravilhas em volta. Por amor, elegi todo o mundo como aquilo que há de mais vulgar. Meu estandarte carrega a rosa branca de minha desistência frente à chuva que rasgará novamente as nuvens.

sábado, 7 de abril de 2012

Aerial

É um céu todo em mel
numa delicada canção de meio-dia
de uma hora de luz
Eu gozo todos os meus amantes em um só
e sinto nos olhos de um,
todos os que me foram perdidos num tempestade
Vento noturno que revolve a vida
numa hora que ainda não desceu seu cruel martelo
Batem cruéis as horas finais de um amor
que nasce com a boca costurada, de folhas mortas
Ah, meu amor - eufemístico panorama - é o nosso
Descortinada a luz na ausência de sombra
o Sol refulgia no nublado mistério dos homens
pequenos; faço no curto das unhas, as garras de bicho
Te amo e cantam os pássaros que me levam
O mar é todo mel
Melífluo destino que me ventam os sons alados
arautos coloridos do amor que é desde sempre tornado
Subámos sozinhos, com os dois pés na água
Até aonde a aurora de sua melodia nos levar

segunda-feira, 12 de março de 2012

Aos maus amantes

Aos maus amantes
reconheço a grande herança
no que toca a leveza dos meus dedos
em costurar-lhes à respectiva lembrança
um feitiço antigo e doloroso
o qual pago com o sal do suor
e de outras lágrimas

Tenho minhas palavras e tenho memória
tenho todo um pequeno teatro do amor em mãos
tenho uma ampla oportunidade de lhes consertar as faltas
dotá-los de gênio e malícia quando não a tiveram
muní-los da força que lhes esvaiu dos lábios
quando do seu não e do seu beijo
talhá-los à forma das vastas legiões que sempre dominaram meus sonhos desde a infância

- Só eu aterro fogo às minhas culturas mortas e violento as minhas mulheres e lhes privo de seus homens. Vocês são quem me assistem calados ser o amor todo que vocês não puderam.

Avalon

Não mais ilhado
envolto na parca bruma
Eu sigo o torto pé,
o oblíquo dos ramos e dos ventos

Perdido na terra das fadas
eu me recuso a dormir
e escapo de minha redentora alegria

- Houve um tempo em que tudo me era longe
eu era uma pequena rocha insígne em sua preciosidade
agora, cioso de meus dias como quem tece uma mortalha...

- Houve também aqueles que me cantaram a morte longínqua
e a eles eu sempre saudei como que em desconforto de lhes voltar a vista.

Ele viu os fantasmas em grandiosoas aparições, mas nunca lhes comunicou o seu grande medo. Era sozinho e o sabia perfeitamente pois nunca o deixava de sê-lo - e assim, experimentava a alteridade em todo o seu terrível e vazio duplo obrigatório: fizera do mundo a hidra de muitas cabeças e fizera também muitas hidras. Um dia, ele talvez quebre o espelho e veja que existe vida e que até agora ele não foi vivo.
 
No passo dos dias em noites
e das danças em quedas
cascateia a luz da aurora
que o brilho nos olhos adivinhou
quando me fora sentenciada a grande ordem

Ao seu comando,
fiz me frio e desapegado
matei tudo em mim que não servia
provei da minha carne
e me embriaguei do fel
que me conservara até então imóvel
(em âmbar, pré-histórico antes de antigo)

Daquele asco,
quedei em sonhos
sequências vivas
de rodas medievais
e outras torturas atuais
fogo e fogo; fogo em púrpura
católico em rigores
como um inverno às avessas

Perdi-me em desertos floridos
e campos de mares revoltos,
prados de relva rachada e seca
sem nenhum dia em que a luz não incendiasse numa estrela já morta
os astros, lá longe, brincavam em sua luz com a minha
me aturdindo em minha pequenez
e me despertando presa ciente das suas

Por fim, me despedi das minhas mãos
dos meu trejeitos
da minha voz
Cortei eterno as matas densas
e no sujo e no urbano perene dos homens
fiz minha casa num momento
que ressoa até agora nos ouvidos
como um gongo ao qual espero paciente
o fim do compasso lerdo e claudicante

- Maturo-me em um pulso mais forte e num tom mais agudo
Acabo a elegia de um segundo que divido comigo mesmo
num instante baixo e mesquinho de trânsito congestionado

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Vida doméstica

Recostado num canto do quarto, ajustando as costas nos lados das paredes, em meio aos lagartos, ele observava - não sem um certo horror - o lugar desolado em que ele se encontrava agora. A casa de proporções e mobiliário pobres, seu pó e inquilinos secretos e inumeráveis. Talvez, sequer fossem lagartos, de fato, mas lagartos era tudo que sua vista alcançava em suas campanhas medrosas por tão desterradora realidade. Que luz medonha não era aquela que trazia tais imagens para seus olhos e fazia de seu tato um eterno mentirosos dos infindáveis terrores que o cercavam lá.
Andavam rápidos pelas paredes. Trespassavam os limites que antes fixavam a casa como quebra do interno ao externo. Chegavam tanto pelo telhado quanto pelas janelas e pelas frestas da porta, dependendo do tamanho. Independentemente do tamanho, mesmo um lagarto pequeno já era lagarto demais. Algo como uma miopia psicológica o impedia de observá-los com sincero afinco. Tudo que sabia deles era seu jeito desengonçadamente veloz de se locomover por onde ele não o poderia, sua cor escura, matizada entre o verde e o azul bem fortes e fechados até o preto. Talvez, tivessem até dois olhos e um coração. Mas não precisariam desse tipo de descrição enquanto habitassem a casa - e a sua vida - como legião. Estava sitiado.
Pó e lagartos. Só isso acompanhava os seus dias naquela casa. Às vezes, se estressava tanto com seus pequenos solavancos de espanto pela casa, em seus procederes de manutenção paliativa - que mais lhe permitiam esquadrinhar as regiões dominadas pelos répteis do que realmente zelar pela habitação - com os insetos mortos e as carreiras desesperadas dos escamosos rastejantes e sem idade, quando ele dava por abrir uma porta que até então parecia uma dispensa eternamente fechada, que ele esquecia de qualquer outra vida que não fosse aquilo.
Que não fosse dormir num colchão velho e furado e vendo no preto dos olhos fechados, milhões de pequenos olhos negros que brilhavam estranhamente no candeeiro de seus medos infantis, ou então, sentindo as cócegas nervosas que seu corpo lhe simulava no suava contato com o lençol furado, ele se punha facilmente a pensar em pequeninas e infinitesimais aracnídeos subindo por suas pernas debilmente descobertas. Quando terminassem de tomar a casa, tomariam a sua carne e lhe despedaçariam em seu sono, que nas suas elaboradas elocubrações, mais se assemelhavam à vigílias de fieis de corações retorcidos pelo ódio das gentes mesquinhas de províncias renegadas de deuses e cheias de demônios antigos e domésticos.
Sabia ele se torturar muito bem também. Não ignorava que se não lhe tivessem sido infligidos tantos infortúnios inesperados para um homem de compleição tão citadina quanto a dele, não hesitaria sua imaginação de lhe pregar truques com os mesmos fantasmas de sempre. Secretamente, sabia ele, seu corpo regojizava no inesperado pontapé desavisado que ele desferia, amiúde, a um lagarto apalermado, e sua mente se contorcia feliz, em ganas de prazeres expansivos e tropicais, no seu lento labor de vingança contra as aranhas e suas moradas insidiosas em tramas intricadas para afogá-las e esmagá-las - com sorte, adivinharia ainda como queimá-las também.
Sua única posse e território dentro daquela casa era a singela mala de viagem que ele trouxera consigo e que guardava suas mudas de roupa. Enquanto ela permanecesse um reduto seguro, no qual ele poderia tocar sem medo nos tecidos, sem aventar pela possibilidade de aranhas microscópicas em suas cuecas, ele poderia ser feliz, mesmo que inconscientemente. Lá, ele vivia o biológico da vida, sua eterna contenda e vilania generalizada; seu ódio era indiferente e seria passado a seus descendentes se ele não fosse um desses homens de vida obviamente estéril.
Era uma distração inocente que lhe ocupava os dias, e, às vezes, dependendo do quão bem imergisse no jogo, era capaz de presidir sobre a vida e a morte dentro daquelas paredes brancas e cobertas de seda milenar e tóxica. Fazia breves incursões por todos os cômodos da casa, todos os dias, para manter a moral alta perante todos as pequenas facções dominantes de cada quarto e manter seus números estáveis, sem tentar destruir seus focos, apenas evitando sua difusão repentina para uma zona ainda não ocupada.
Ao mesmo tempo, mantinha a maior parcela de sua energia e imaginação para a sala de estar, onde, por razões a ele desconhecidas, logravam residência muito menos lagartos nas paredes descascadas e também não se encontravam armários para o reduto de insetos das profundezas do pesadelo cotidiano. Munido de um balde d'água, uma vassoura e dois panos e um par extra de sandálias velhas - com os quais se deparou ainda na chegada à casa, empoeirados, por cima de um tapete deslocado no lado da porta - ele proclamava guerras aos donos de direito daquela morada planejada pelos homens aos animais. Já tinha conseguido para si um pequeno quadrado onde antes ficava o velho sofá empestado de bichinhos horríveis e reduzira quase que todo o resto do cômodo a uma área de forçosa paz com os lagartos, que por ela transitavam, agora, apenas pelas paredes e não mais pelo chão. A mobília fora drasticamente descartada tendo em vista seu potencial de fortaleza para toda sorte de criatura macabra e enxame que pudesse abrigar.
Acabava por nomear alguma aranha, ou lagarto, particularmente mal encarado ou por demais estático, por alcunhas militares. Ele era um guerrilheiro nas montanhas ermas em que se encontrava. Seu outrora etéreo mundo de brumas e liláses dera lugar a uma terrível e preciosa quimera: uma guerra que ele jamais conseguiria vencer contra a própria natureza que lhe abrigava de pesadelos ainda mais insondáveis.
Qual não foi sua felicidade quando encontrou uma marreta - quase uma maça medieval - nas rápidas escaramuças por um dos quartos perdidos por ora! Pôs-se a correr pela casa e destruir tudo que julgasse inútil ou traiçoeiro a seus intentos modestos de uma habitação sem visitantes indesejáveis. Com esmero e paciência, e, há quem diria até, não sem uma dose de técnica espontânea, capaz de inspirar sentimentos elevados em quem a observasse em ação, ele caía por sobre o mobiliário incauto tal qual tomado pela fúria com a qual um teutão ansiava por tomar os deuses como seus pares. Destruiu armários velhos na suíte, se livrando dos escombros com auxílio de uma perigosa estratégia envolvendo fogo e álcool de uma pequena dispensa de bebidas que ele se deparara ainda outro dia, inesperadamente. O plano imbecil funcionava porque a vodka era barata, a cachaça era farta e mesmo o mobiliário original que ele tencionava reduzir já era bem modesto para que o fogo não se alastrasse pela casa contanto que fosse ele rápido o bastante para controlá-lo uma vez concretizada a empreitada. Investia também nesse tipo de tática, pois julgava que de alguma maneira isso devia afetar seus adversários inumeráveis, invisíveis e onipresentes.
- Eu vou queimar todos vocês e suas dinastias condenadas, ele ria em meio a pequenas labaredas caseiras. Seu único medo era o de sufocar, pois as janelas abertas não davam muita vazão a fumaça que se fazia. Mas depois do terceiro armário queimado e de uma cama de casal quebrada, seu furor pirotécnico arrefeceu. O momento da ofensiva passara e agora, apesar do quadrado de entrada da sala permanecer o único lugar no qual ele se sentia a salvo, já podia contar com um quarto (um quadrado nu, guarnecido por uma cama no seu centro - toda a distância possível das paredes e de seus passantes - que contava com o já mencionado colchão velho e o lençol furado) e um banheiro, que por algum milagre de uma deidade local e generosa, funcionava magicamente, apesar de não ter água quente disponível.
Ainda assim, as imagens de seres microscópicos, rápidos e indiferentemente impiedosos correndo por todos os cantos de sua visão o solapavam constantemente em seus cada vez mais frequentes devaneios e delírios vespertinos. Visualizava, sentindo uma certa mescla de pavor e graça, seus braços alvos diligentemente lavando os pratos certa noitinha, cantando uma singela canção, confortavelmente um tom ou dois abaixo do original, quando uma aranha se precipitaria de sua teia estendida desde o início dos céus, passado por algum pequeno e imperceptível furo do teto, para se propulsionar dentro de sua boca em desavergonhada abertura musical.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Pequena reflexão sobre momentos íntimos

- É isso que você quer?
- Sim, é isso que eu quero.
A noite cai e pode passar mais cedo do que um sussurro. Qual a linha que divide tudo em seu devido lugar? Não é ela quem rege a noite e seus amores, mas sim, algum brilho vespertino na retina que alerta aos dedos para o perigo do que se toca quando não há mais luz.
E o perigo é ignorado em sua real natureza. Então, ele é apenas a face mais cristalinamente difusa do momento. Em que momento você se perde e ama? Isso eu não pude perguntar. Ele me abraçava e era bruto. Mas jamais pararíamos de competir. Um de nós venceria e feriria o outro para nunca mais nos vermos. Até lá, riríamos e seríamos adoráveis juntos. Como pequenas pessoas vivendo pequenas vidas de vidro. Preciosos.
Imprecisos no alto madrugada, nossos corpos erram pelas vastas extensões do lençol revolto, tal qual soprasse pela cama o vento que assola o sargaço mar dos trópicos. Não que haja o mistério em proporções tão pequenas quanto a vida privada dos panos e dos amores jovens, mas algo de naufrágio e refúgio salgava os beijos e tornava os toques ásperos. E isso nos fascinava até o fim das horas.
E nos cantos, nos nichos invisíveis das paredes, ardiam as velas. Algo antigo e cego que vivíamos sempre na noite. Eu não gostava do escuro nessas horas, mas era o jeito. Não podia me fingir de cego para o que poderia estar me aguardando na claridade. Qualquer coisa que me desagradasse.
Nos falamos por gestos e palavras que não significam nada fora do espaço delimitado pelo ritual. Somos crédulos quando amamos. E amamos quando amamos. Nada há de inocente e talvez queira-se inculcar culpa até nesses atos supostamente tão livres e caóticos. Paro de julgar quando me dão prazer?
O que dizia sua língua quando ela me provava no calor mais derradeiro desses momentos? E nos momentos de sonho quando meus olhos vem o negro do sono, mas sente o claro clangor dos corpos nos seus calos? Nada que eu pudesse levar comigo para um outro momento no qual eu precisasse de força e consolo. Aquele momento era aviltado de toda uma vida de recordação, mas nunca se acabava naquele momento em que ele era para sempre e nossos braços jamais se desencontraria no chamado da noite.
- Alguém me mata por debaixo dos lençóis. Era o momento que eu esperava desde o início. Era a forma que meu corpo sempre ansiou nas contorções de prazer e nos gritos de dor. Esse é o alívio de que lhe falei. Vamos embora. Adeus.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Pausa

Pausa
pequena pausa
momento de mestre
momento de gestos
mímica muda
soluço que engulo

- É só mais um dia
só mais um dia
só mais um dia
só mais um dia

Uma lesão
que força os ombros
que cresce no peito
que pesa as costas
e me joga na rua
e nos braços de alguém

- É só mais uma noite
só mais uma noite
só mais uma noite
só mais uma noite


sábado, 18 de fevereiro de 2012

Hounds Of Love

Até aqui os cães incansáveis me levaram, ao farejarem um coração ávido de amor e outras emoções baratas. São quatro terríveis e brancas paredes que me encerram por detrás das cortinas e da porta, preso nesta que é a câmara mais final de meu momento: o quarto daquele que eu posso amar.
Que eu posso amar calmo, como quem se levanta da cama e se espreguiça com um certo prazer, redescobrindo as dimensões do próprio corpo; que eu posso amar como quem não quer se machucar, mas assim o faz; enfim, que eu posso amar como só que sabe amar trágico e furioso pode. Então, eu levanto meus olhos lentamente para ele e vejo suas costas arqueadas. Ele senta insuspeito na sua cadeira, confiante de minha presença e atração - o que mostra que, às vezes, não basta saber de algo para se estar certo.
Fui encurralado nesse pequeno e miserável quarto, deitado na cama desse homem que jamais me amará. Não importa quantas horas em areias verta aqui minha mais ima ampulheta a pulsar no peito. Não importando quantos anos meus olhos revelem de provas e prêmios; não importando os segredos e os gozos inauditos de artes ancestrais meu corpo possa ministrar nos segundos mais decisivos do sexo. É no abraço inexorável do meu fracasso eminente que eu posso amar e sofrer como quem tem um amigo no mundo.
Eu estou tão fácil aqui, apesar disso. É como se tudo isso que ainda vai acontecer me fosse muito antigo e claro, uma imagem impressa no cristalino dos olhos - eu todo me sinto como um mapa dos meus deleites e desprazeres ao longo do tempo, sou uma pessoa bem óbvia nesse particular - e eu sei o que posso esperar.
Comigo nada é simples: há sempre uma música, uma frase, um pensamento, em suma, uma arapuca elaborada para transformar as pessoas no que eu quero que elas sejam para mim. No caso em pauta, o homem que escreve diligentemente na sua bancada - e que, com certeza, são as mais belas palavras para uma outra pessoa... - ingenuamente tropeçou por todas as sendas que o fazem indispensável para mim agora, sendo o ápice de seu amor não o sêmen aspergido em glória divina, mas o desprezo e a inocência que o seguem. A inocência de ignorar o céu e o inferno que eu ergui em seu opróbrio por me ter infame e insignificante, de me delegar ao seu leito não mais do que as horas furtivas e oportunas das minhas carícias pesadas e abrasadoramente frias - o peso do cálculo e do plano, a minha fabulosa mnemotécnica da dor, a ladainha primordial de todas as primaveras do amor - e o de um risível abraço que nos enlaçaria até as primeiras horas da manhã seguinte. Como se tudo isso não fosse um grosseiro engano.
Ele pagará em minha imaginação todo o peso dos homens em ouro que já passaram pelo meu coração. Ele pagará a sina de minha mãe em todo seu desamor. Ele pagará, finalmente, os anseios vingados de um jovem nas ruas abandonado. Ele pagará e eu irei embora para nunca mais.
Temos hábitos diferentes. Não suporto a luz acesa após certo horário, aquela claridade alaranjada e insípida me irrita. Irrompo o rosto por entre as cortinas e vejo a noite tal qual ele sempre poderá vê-la, enquanto eu sei que essa me será a oportunidade derradeira.
Nada demais. Sim, mesmo na beleza e no desejo atendidos, nada há de redentor na saciedade. Vejo a noite e a escuridão que tanto ansiava e não me comovo, é como beber água quando não se tem tanta sede assim. Vejo um avião passando longe e penso em linhas e cores de uma música. É isso que ele me deu e que eu estava esperando. Muitas vezes eu já a tinha escutado, perdida na sequenciação de um disco longo e hermético, sempre a tomando como a mais enfadonha das faixas. Mas agora é ela quem pinta e adivinha meus passos nas noites que vão se seguir do meu olvido daqui e da vida dele. Sim Amelia, foi só um falso alarme.
Antes mesmo que ele olhasse para mim em desejo naquela noite eu já havia decidido o meu destino e o de meus pés. Seria eu sempre gentil e carinhoso, e o teria nas vistas como quem vê um grande e plácido amor estendido em planícies translúcidas e roxas, vastas e eternas - um amor leal e pesado, de uma singela queda bovina pelas coisas de sempre e seus encantos cansados - extensa relva na qual eu não posso me confiar sequer um mísero repouso, em risco de nela ser tomado pelas vinhas e me transfigurar em relva.
Porque eu amo com a necessidade de que um acorde se faz seguir por outro, com a sagrada e divina necessidade imbecil de que uma cor se sobrepõem a outra. Com o patético do desejo esvoaçante e adolescente que faz de um gesto e de um beijo um adeus mudo e amargado em lágrimas que eu não vou deixar você ver jamais - e não se trata de orgulho, isso eu lhe juro.
E com essa cegueira eloquente eu amo você como quem antevê a véspera do fim do mundo e só você como o anti-fim do mundo, como a saída. Como o único trilho possível a se seguir.
Então vem um milagre, depois de um mês ou dois de sofríveis pinturas rupestres em letras e nomes, vem o milagre de alguém novo por quem sofrer e perseguir com graça e silêncio, indelével, mas imperceptível, sem tomar muito espaço. Como quem ama para salvar a si mesmo de algo que pode surpreender por entre as folhas nos jardins que são todos os arredores numa madrugada deserta e imóvel numa rua próxima de casa, enquanto passam as prostitutas e me cumprimentam amigáveis - só quem é capaz de se dissimular inofensivo e digno inspira tal coleguismo de estranhos na noite, mas por toda a gama de razões possíveis.
Haverá um novo caminho, um novo homem, e mais uma mortalha que eu desfiarei todas as noites que serão naqueles fatídicos dias, todas as noites de minha vida. Cada amor é mais uma pele morta que eu tiro de cima de mim com franco espanto. Com uma exclamação muda que se eu externar, pode me fazer chorar.
O pranto copioso nunca me fez bem. Prefiro andar sozinho e pensar em nuvens e mulheres, em como um se torna o outro e como um canta o outro, até que eu chegue em casa e coma ou durma. A marcha dos cães cansados que me trouxeram até aqui, farejando meu medo e minha carência, foi sempre para me levar de volta para casa. Talvez, tenha manhã um dia no qual eu possa realmente me aventurar, não mais subir as conhecidas alturas estagnadas dos planaltos do amor fácil e espelhado de sempre, e me apaixonar de verdade e incendiar os meus mais antigos campos e prados, não mais ser um servo da terra e olhar para o mundo, enfim, como quem o vê feito do mais imaterial e desenha nas nuvens o destino dos dias e das coisas que caem pelos seus olhos como pequenos acidentes de um percurso desconhecido, gravado e expresso no seu sangue.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

The Dreaming

De novo. É a mesma casa e é a voz da meia-noite que fala comigo e por mim. Ela mesma que falou pelo meu corpo convoluto em pranto. Volteava a meia-noite naquele dia que eu chorei nos braços dele, sem ele, mas apesar de seu contato tosco e opaco. Era ela que sempre imprimiu a marcha solitária de meus passos não andados. E ela que me fazia agora levantar e deixar o novo leito.
Será que eu irromperia, dramático, nos braços de meu amante, após um lapso esteticamente apropriado de tempo considerando visões cristalinas vazias pela janela da sala? Não, eu simplesmente faria aquilo que sempre marcou os meus amores que eu temi: sentiria no tato das mãos dele o áspero da lixa que me raspa o morto das mãos e me erode pouco a pouco, como se eu fosse geológico e antigo.
Quando agora sou mais novo do que nunca; no que há de mais meu e superficial, que revele o antigo que, por tanto tempo, correu e me sedimentou em rios de areia, canais secos e áridos, onde vida nenhuma crescia...
- A porta se abre. Há um inseto morto sob o meu braço. Mudei o cenário.
Mas agora eu volto a meu amor imaginário, nessa noite em que não sinto o seu abraço erosivo. A corrupção do amor e do sangue naquilo que chamo primitivamente de vida. Na sua mão encontro os mais breves e tácitos segredos. Nas mãos do meu homem, nem que seja meu  só por uma noite apenas, eu encontro o futuro que eu destruo, clandestino, todos os dias. Minha crueldade chinesa.
Sobre qual linha de vidro quebrado equilibrarei meus pés nessa mais árdua travessia das agruras cotidianas? Que tom de roxo nublará os meus sonhos e delírios até serem todos eclipsados pela glória de minha derradeira queda no que há de meu imo e que me petrifica; meu coração são os olhos de Medusa. Com eles impressos no meu escudo, afasto os inimigos indesejáveis - paro os outros eu me cego, sou minha própria esfinge.
- A porta se abre um pouco mais, lentamente, como se a vida tirasse prazer de me amendrontar. Tenho medo confesso e fecho a porta. Mas é tarde de mais, eu vi o rosto no escuro da minha sala, no coração da minha casa. no círculo mais íntimo do meu banal. Tudo desmorona agora, tudo é fantasia e escuridão no sussurrar do ventilador e no tilintar das persianas. É o medo do Deus que me consome em ganas de fúrias e deleites vespertinos ceifados no gozo da antevéspera. Tudo pode acontecer, o Rei está morto. É o reboco do mundo pego em suspeita e inacabado.
- Por mim, dentre todas as pessoas do mundo. Os cães me seguem, uma matilha ensandecida pelas matas cinzas e asfaltadas. Para despistar o destino, jogo meus sapatos na água. Agora, corro e me machuco. O medo passa, o mundo volta ao normal. Volto ao meu amor e seus dedos de lixa.
... que me lixam os pés tão bem e lentamente quanto fazem com as mãos? Quanto sangue secreto eu verto na língua de um gato, se ele me banhasse como quem visse um duplo num espelho, como quem tivesse nos olhos um intricado jogo de espelhos que reduzisse dois corpos a um só?
Sonho e realidade se mesclam, seus filhos são os deuses mais terríveis. São legião. Eu os chamo "mistério" por reverência e ignorância. Tenho medo, mas já não é o pavor de antes, aquele congelar de ossos triunfal que vem de antes do tempo e de seu todo. Vem antes dos prazeres escondidos da infância, vem antes do cheiro de homem que me cativa.
- Por qual voz eu falo quando não me conheço e tudo caí de uma só vez? Isso tem uma imagem e não é uma só, é um vespeiro. Não. É um formigueiro que escraviza os vizinhos e coloniza o que há dentro das paredes, em conluio com os ratos. Os sonhos dominam o subterrâneo da vida. Me perco em minúcias de perspectiva.
Acabou. Posso voltar ao meu calmo idílio de mar turbulento. Porque o que não se chegou ainda a conhecer é menos terrível do que o que não se presta a tal exercício. Entre as sombras e os deuses, Platão quis mancomunar com os últimos, mas caiu na rede dos primeiros.
Será que sangro com o duro das mãos de meu amor? Como que meus beijos tivessem do ferro o gosto extraído do meu sangue. Que imagem terrível, mas sem a necessidade daquilo que de fato é terrível - os deuses mudos.
Não consigo mais voltar ao meu primeiro caminho. Despertei do pesadelo no meio do seu caminho. Sem o feitiço do sono ele não me assusta mais, mas ainda não posso dormir, há algo errado que eu posso surpreender em meu quarto  e talvez eu tenha que descobrir o que seja antes de me deitar numa cama outra
- Voltou. Eu sinto no calor do pé, mas ele não sobe. É como se minhas veias tivessem sido entupidas de carbono o bastante para envenenar o medo. Eu venci? Não, nem mesmo a derrota também. O medo vence pela eterna contenda que ele instaura. O medo é uma música que ninguém escuta quando vê um filme. Ou quando dorme abraçado com alguém. Enfim, é uma ótima companhia para a sua morte, pois ela se põe à sua direita, enquanto a outra vai pela esquerda.
Isso não tem que fazer sentido. Eu tenho é que sobreviver e sentir o fluxo. O momento ideal em cristal que me pôs aqui para isso. É maior do que tudo isso e cabe no espaço em braco entre duas palavras, ou no espaço entre as curvas das letras.
Passou. Eu acho. Acabou enfim até que volte. Até lá, eu terei me enrolado mais uma vez nos
- Um novo e terrível som. É o som do além-do-mundo. O após os dias dos dias que vivo. Não há canção para as horas mais negras nas quais as hordas do mundo cru, do mundo sem homem, surge e me carrega sem que eu saia de minha cadeira gasta. Eles me levam por seus dutos escuros e úmidos, abafados e suas mãos são todo o chão que rala as minhas costas e pernas, enquanto eu grito, interrompido, no nó de minha garganta muda. Eles me levam, pequenos, até o santuário profano que eu não tenho como descrever.
- Não é humano. Nele acabam todas as artes e fés, toda a filosofia e mnemotécnica da dor. Lá vivem os deuses em seu império sem dor e nomes. Os deuses são bestas cegas, são vacas sagradas que me olham negros e absolutos em sua graça abestalhada e bovina.
- Podem me devorar, mas não fazem nada que eu possa dizer que saiba o que é. Eles não podem me tocar. Eles querem, então, que seja eu quem me mate. Pois senão eu também seria um Deus. E eu jamais saberia ser uma vaca. Tenho que dar um fim nisso, mas a pressão das correntes é súbita e desaparece. Logo, ela volta e eu já sei o que eu estou pensando e não posso - ainda tenho esperanças de dormir de novo.
Voltar ao primeiro lugar da infância. Ao tempo do grande medo do mundo e dos monstros - que sempre eram todos os monstros - e ver o reboco e a poeira do mundo que morre a cada dia. Que eu mato a cada dia, como quando matei homicida o eu antigo que eu era e que tinha que morrer antes da hora, para que um outro eu mais novo e melhor pudesse viver. E não se surpreender vendo a serpente-mundo trocar de pele. Crepuscular sensação que me toma ao considerar vivas todas as coisas ermas desse mundo de brumas.
- E tudo começou como uma brincadeira inocente, sabe? Eu só queria um beijo dele e achei que me satisfaria com isso. Mas eu não sei me apaixonei, eu não sei como eu funciono com isso. Ainda mais agora. Nunca tive o bastante para ser um inocente, acho que sou idiota apenas, como quem não sabe o bastante para saber algo, mas mais do que o que se precisa para não sofrer quando vem a dor. Eu não. Eu penso.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Melancholia

Algo do toque dele na minha pele me incita a imprimir suas marcas em meu corpo. Me esforço para de alguma maneira conservar o seu cheiro por cima do meu. Meus braços se movem e ajustam o peso do meu corpo em relação ao dele. É um lance preciso e de uma candura desajeitada - nem tudo está perdido.
Tirar do amante o que mais se deseja: o prazer dele, e não o seu próprio. A crueldade em se pintar nos recantos mais íntimos do que é alheio, em deixar pistas de si mesmo no prazer do outro. Saber fazê-lo ouvir no sibiliar surdo da meia noite a única voz que eu posso imitar e chamá-la de minha e secreta.
Nossas mãos se entrelaçam e caso eu me visse, diria que eu o amava. Mas ninguém sabe de nada depois do sexo, só se vive a calmaria da necessidade cumprida. Tudo que eu tinha eram alguns dedos estranhos emaranhados nos meus, num lugar bem longe de casa. Se eu podia estar tão longe de casa é por que talvez eu já não tivesse uma, como quando a tenho num abraço furtado a essa luz tão fortuita e desonesta, que faz os homens mais frios acreditarem na doçura e feminilidade de um sentimento estúpido e suicida.
Toco de maneira displicente pelo seu corpo e sinto a flacidez da saciedade, da volúpia presente sub-repticiamente nos momentos de preguiça e que só agora se revela na mais ávida cupidez. As cores que dançam nas sombras das luzes e panos no anoitecer me mostram todos os homens que sempre foram até o fim dos tempos em dunas farfalhantes de areias em alturas esquecidas pelos que lhe antecederam. É o segredo da humanidade que se vislumbra no fim do amor - o fim de toda a vida, a vitória final sobre a morte na indiferença do gozo e do sêmen desperdiçado, incapaz de fecundar esse mundo estéril de prazeres puros e inocentes: o mundo tem seus próprios planos sobre o que tem que acontecer e como, e eu me revolto por estupidez e pouca idade. Os contornos femininos da juventude e seus arroubos ímpares de paixões doentes que recitam ídolos caídos antes de falsos - um delírio, um último namoro de infância, antes do grande cinismo que permite a uma pessoa que ela se ligue a outra e até que não mais.
Desfruto, indolente, de um fio de saliva que desce delicadamente de minha boca cansada. Limpo-me na pele temperada de vida que é a dele, em seu ombro, disfarçando com um ligeiro beijo. Olho-o imenso e dócil, como uma grande criança, como se não viesse jamais a saber sobre o duplo do amor e todas as suas posses e territórios de atribulada manutenção - eu ainda posso ir embora de mãos limpas e sem ter perdido nada, ainda não jogo com esse requinte, mas isso não tem como se saber muito ao certo.
Não sei como ele ama: seus gestos, seus segredos, seus gostos. Ainda não lhe extraí o que há de mais subterrâneo em seus caminhos muitos, e nem tenho essa grande ambição. Minha vontade é a de apenas encontrar no seu calor o de um porto seguro, onde eu não possa me acidentar nas rochas que se escondem sob a revolta do mar azul e profundo. Sempre terei medo do mar como quem se põe diante de um deus inclemente e todo-poderoso. Sou um macaco religioso diante do mar, mas eu lhe dou as costas e me volto à terra firme para desfrutar das criaturas que se rebelaram há muito contra o seu império e constroem agora a hecatombe final para mandar-lhe em vingança - o gosto amargo e lacerante que se apoderará da garganta do deus mar quando enfim refizer seus todos os domínios das suas legiões rebeldes e caídas em olvido; triste gosto que porá fim aos meus delírios, mas isso já faz muito tempo que está previsto para além do fim dos dias. O mundo acaba antes do fim dos seus dias.
Sou simples e tenho fome. Pego o que eu quero sem precisar de nada além de alguns passos entre as sombras da noite. Fosse esta a minha casa, teria medo de surpreender seus fantasmas, mas como não é o caso, não temo aquilo que não terá alegria alguma em me atormentar o trajeto rápido em direção à cozinha. Muito mais do que a surpresa, é a percepção da grande violência que é algo como o "cotidiano" que nos faz tremer perante algo extraordinário. Ninguém olha para as suas assombrações e as entende - são apenas visões do que já se passou em seus olhos. Muito da inexorável criatividade do acaso deve se perder nessas reduções. Quem pode descobrir um abismo no meio da sua cozinha sem tropeçar num velho parente falecido, ou num espírito de coração desassossegado como o seu próprio?
Volto para o quarto, mas não sem antes me deter na janela da sala. Todas as luzes estão apagadas, mas meus olhos se param numa janela qualquer, num outro prédio em frente. Numa janela um pouco mais alta do que na que me encontro, sei que alguém me olha. Se fosse de dia, ou se a casa fosse minha, se eu me sentisse dono dessas ruas e dessas terras, eu teria medo, porque esse olhar era algo incrivelmente gratuito, com um gosto metálico do aleatório envolvido necessariamente nisso. Mas agora sou um triste exemplar de homem - eu quase faço sentido no desgaste do amor. Quem me visse, me acharia cansado e são - uma combinação redentora afinal.
A exegese da espécie por fim. Seu derradeiro fim que sinaliza. Pessoas felizes e a aurora do ocaso de toda uma espécie e de um triste planeta, cujo único infortúnio foi o de nos ter abrigado sobre o seu solo por tanto tempo. Mas deve haver algo como justiça agora - que deve, porém, se aproximar mais com uma concepção cítrica de humor do que com algo tolo e símio como justiça, mas me urge antropomorfizar o universo. Talvez o homem que eu amo seja uma estrela distante, ou um sol que se foi há muito tempo, mas cuja luz ainda pode bater no rabo do meu olho e no escondido da minha alma.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Estou sentado no chão, minhas costas contra a parede do armário. Eles falam entre si enquanto eu brinco com o plástico da ponta dos meus cadarços. Sobem amiúde formigas pelas minhas pernas descobertas e eu as esmago com uma indiferença que me dói. Lembro que na infância não hesitava em comê-las - pesa-me a falta dessa ingenuidade, agora que esse meu silêncio e consternação são um sinal de cálculo e medida.
Rio discreto de uma piada que nunca ouvi. Mas conservo o sorriso bobo mesmo assim, de graça - não consigo sequer lhe tributar uma utilidade nessa pequena e instrumental economia gestual à qual me presto neste momento.
A pessoa que não me interessa de todo se dirige a mim com forçada amabilidade. Não que ela não queira realmente saber minha opinião sobre o assunto, quando não menos do que muito há pouco eu vocalizei particular interesse. É apenas uma questão de gestão das relações sociais imprevistas: tem que se suprimir o terceiro elemento indesejado - mesmo que sob a pena de integrá-lo ao círculo.
Falam de algo que eu desconheço, mas cujo contexto me permite um pequeno adendo conciso e mordaz - não quero muito mais do que isso agora, seria perigoso. Ainda mais quando estar em tão aguda alteridade ao meio me abre mãos de mais altos transportes.
Posso facilmente não estar lá. Ser pequeno e discreto é algo que me une tão bem nessa minha suposta dualidade de corpo e mente. Tenho também minha juventude e suas marcas no meu rosto. Tenho essa pequena liberdade de me rapinar a consciência. Por que? Porque é "o meu jeito". Sim, nada mais certo do que isso, tenho certeza.
Basta. Falo um pouco mais e sou idiota. Erro flagrantemente e meu espetáculo degringola a olhos vistos. Não tenho muito mais o que fazer a não ser recolher os cacos que sobraram e ir para casa, mas eu ainda tenho uma pequena chance de ser inesquecível, de não derrubar a bile de meus lábios nos tacos do chão. De não decantar minha poeira sobre os móveis, de me fazer imprescindível mesmo que pelo meu silêncio. Imagino alguma conversa, alguma tema que me permite a fatal expansão do amor e do doce. Mas não posso, só falo assim comigo mesmo e com aqueles que acabaram mais cedo do que essa tarde. Essa tarde durará por mais uns meses de sim, não e outras perniciosas indecisões indecorosas - até lá, porei minha boca e mãos em trabalhos mais virtuosos.
Antevejo a véspera de algo novo na esquina dos olhos com o mundo. Pisco e vejo o ônibus chegando. Vou para casa sem maiores explicações sequer para mim mesmo. É um primeiro passo que pode ter um desfecho mais grandiloquente do que eu pretendia, mas esse é o risco que toma. Ocupo-me do que posso por ora.
A cidade está quente e abafada- é verão e fim de tarde. Mas algo em mim anuncia a batida lúgubre de um inverno em noite e brumas de outrora. É hora de me relegar ao Sol como quem saúda um fantasma da boa aventurança de outras terras no além mar. Queria ir para o além do mundo, mas ainda não posso.
Repasso o que eu disse e o que disseram, talvez, para calar o som daquilo que eu acho que poderia ter dito. Um exercício fútil e irresponsável, o que não lhe diferencia em nada daqueles que nutrem nossos músculos e sedimentam nossa pele em força, por mais óbvia que seja a mnemônica da dor neles envolvidas - a eterna apologia da fraqueza a si mesma que a impede de se sentir como a força que poderia ser. A ausência de uma sombra sequer de modalidade num pensamento como esse requer um tempo melhor empregado e canalizado do que o de agora. Agora é hora de ir para casa e dormir.
Um amigo me espera sem que eu o saiba, mas acudirei ao seu chamado porque não mais penso direito. Tenho de ocupar muitas coisas durante o meu dia. Se antes o coração, agora o ouvido e a língua - estou pronto para agir, mesmo que apenas in loco. É uma brincadeira, e dessa vez, no mau sentido da coisa

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Não quero que voe uma acusação da minha boca, mas é tão difícil quando se está nessa posição. Só nela eu consigo abrir os olhos e ver que sempre foi difícil, por que não podem meus lábios o mesmo? Posso pensar que seria diferente, mas aí o jogo pára. É melhor assim.
Podia dar um toque qualquer, um colorido aqui, mas até que alguém entenda tudo, isso só parecerá o transcrito de um pensamento suado e pesado, de tato áspero e prazer raro. Como alguém quebrado em dois, cujo brilho no olhar desfocado reflete o espelho partido formado por seus membros desencontrados - antecipo a pergunta, como quem fala por cima da música.
Cinza e algo de doce em tudo isso. Eu posso não perguntar por ora. Eu ainda tenho minhas músicas e livros, minhas brumas; e eu posso não entendê-lo também. Tenho que aprender a extrair alívio disso, mesmo que meus punhos golpeiem pedras. Mas não estou mais à salvo, sou caçado por algo que chega por de trás das árvores. E eu não paro jamais, tenho medo. Se não fosse o medo eu não teria nada.
Nada. Medo é tudo que eu tenho, e não o carrego, pelo contrário. Eu o deixo por aí, como quem brinca de que pode esquecer, mas eu sei. E então eu me afio nele.
Disponho do meu corpo todo, nu, mesmo com roupas, e utilizo todos os músculos que posso soerguer nesse bravo e enfadonho esforço. É quase como sexo. E depois eu sinto um certo asco de mim mesmo. Eu vivo por esse desprezo, sentir das minhas palavras o fel por tê-las produzido. Nunca soube sonhar, mas sei me carregar com um misto de ódio e amor que me entretém por ora.
Cada lâmina fina e fria que o medo fez ser a minha pele. Eu corro. É sempre para fora, como o grito horrível das faces que crescem por cima de cada máscara sobreposta até o fim que não há. O medo me é imanente, eu sou o medo intransitivo e atroz, e sou terrível no meu medo, com uma sem-clemência que emociona os mais fracos e passa por cima dos mais fortes. Mas todos tem alguma coisa assim, só que a minha é esse medo, que por fim, não é nada.
Eu porto a máscara e a marca, se alguém me lesse, me diria um proscrito da vida e dos homens, mas poucos o fazem e consigo ser feliz. A música pode acabar a qualquer instante e eu ainda estou aqui, sentado com os olhos vagos e os braços caídos no colo, os pés nos tacos.
Tem um canto para o qual eu olho - para onde eu posso ir se eu não parar de olhar para lá? - como quem tem um canto e nele esquece do mundo e vira pedra. Uma escarpa majestosa um dia eu posso ser sobre o mar, se eu chegasse perto do Sol e com ele escurece as doces mortes que trazem as ondas ao mundo dos homens.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Foi

Quero que me calem a boca
O abafado da voz encava em mim
as câmaras que sempre foram e grotas
após as chuvas de todos, se eu me deitar
corre por mim o rio e me faço leito
Além do átomo, duas vezes, um dia
eu chego ao mar e bebo o sal

Até hoje o amor foi difícil
e eu nunca quis muito mais do que isso
meus lábios em granito
pó sai e abafa o mundo
que me é pisado dos pés
Antigo, rejeito o antídoto
sou bobo e bebo o tempo todo

- O través de um dia inteiro em que eu não durmi


quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Espiritualidade

Ele passa por mim,
tão leal que é
como se eu fosse uma ponte
em toda a minha indiferença

É, tem algo que não se diz nisso tudo
mas, quem pode censurar-lhe
e lhe tomar por um original
quando esse foi o primeiro pecado

Agora, eu vejo por cima de todas as alturas
o frio corta a pele, mas eu já não sinto
meus lábios racham e eu me desfaço em pó

O que resta então ao homem que me ama
senão uma nuvem fugidia de fumaça
que ele crê ser o homem que lhe ama?

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Brunette in the Bleachers

É viver das migalhas quase - algo que requer a dignidade de quem ama e não tem medo das migalhas. Eu escrevi uma coisa há tempos que ainda não está aqui, mas que sempre carrego, não como um amuleto, mas como uma promessa que cumpre à cada passo - à cada passo eu estou na rua e nem é de noite, e, é quente.
"Saber viver" é algo que não se sabe, mas resiste a verdade nesse atavismo: viver nunca foi matéria de conhecimento - é o próprio campo que propicia a fabricação de cada saber, ou seja, é um jogo de búzios e avelórios; brinquemos. Então, eu jamais me conheço, apenas me adivinho, e, quando muito, me divino pitonisa e profecia: duplo, antigo e onírico.
Assim, em dois lances, como se eu não quisesse nada, eu já desisti. Tenho todos os nomes feios sob o Sol, mas me regojizo perante a presença da Lua, sou seu emissário oculto, secreto para ela mesma. Clandestino, pernoito em minha casa, enquanto meu corpo se faz alma e voa para muito longe; como se amor fosse um outro tempo - algum tique discreto que sustenta toda a melodia improvisada de um erro, que eu repito todas as vezes em que falo o seu nome na minha boca.
Ontem de noite, eu visitei meus amigos. Depois teve um dia que foi normal, mas era mentira. Desde muito antes (e eu acho que você sabia) que eu já planejava - e eu sei que não enganei ninguém, mas não querem me ouvir.
Como explicar para mim mesmo, aquilo que me tocou no mais infantil, mais desprotegido e mais entorpecido? Como não me dar a razão certa para a qual eu quase me sufoquei na poeira e nos destroços? Sei que faço disso o mais difícil possível; esse é o problema, veja bem, para mim é o mais fácil.
Então me atrevo? E digo "hoje"? Mas até que já passou, sabe? Não tenho medo, eu acho, mas não sei se quero...
Me levanto dos destroços em busca de outros. Sou homem, sei que só posso saber destruir aquilo que faço, pois quero ser sempre maior do que a vida. Nunca me canso até que fico velho, e aí eu já estive sempre esperando me cansar.
Vejo a arquibancada e estou no deserto (fujo de Meca). Caravaneio incólume na areia e escuto nos grãos que se fazem vento, aquilo de mais sujo: a vida sem sexo e sem água. É tudo muito mais sujo do que eu pensava. Minha pele se desfez em óleo na travessia, sobra o seco que me segue até o que eu faço de fim, por falta de espaço em mim
- É melhor eu parar por aqui, mesmo porque já descobri que nem precisava de tanto - pronto, fui vulgar e fácil, lhe revelei o segredo e está tudo acabado. Ah, mas houve a pequena glória - minha púrpura trai o católico que há em mim.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Noite II

É isso - estar na rua, de noite, e sentir uma música que toca só para os seus ouvidos, que só penetra pelos pontos abertos mais obscuros do seu corpo - é o amor.
Que não tem nome e forma, mas que pulsa antes do sexo e depois do gozo! Sim, e as luzes brilham enquanto os ônibus passam de quarto em quarto de hora - como se o dia não acabasse e tudo passa por mim como em círculos.
Mas falo demais. Se me escutasse mais do que me vejo, logo desgostaria disso tudo. Porém, aqueles que são dados aos arrebates, por que não cantar a glória aspergida pelos dedos finos e longos da abençoada noite! Que se cubra os juízos pequenos dos homens e que de um amor só se façam vários como se nada tivesse uma casa para retornar - porque eu posso sentir que essa noite não termina nem quando eu durmo do seu lado e estamos depois do juntos.
Quando vejo passaram por mim os homens e mulheres solitários e os casais de mãos dadas - eu os sei todos sedentos - sinto no imo de cada pelo a cobrir minha pele corada, que temos sede e que queremos beber o sal das pedras, quase como se isso fosse o tudo da vida. Mas o que é o tudo, isso não se pode perguntar, porque é como pedir para que lhe ensinem a fazer amor -
Pois é nessas horas que o que há de mais tolos em nós ganha cores de pássaros e asas, e cada palavra dardeja além da tolice de quem as fala - amor e dinheiro se ganham na noite e ninguém tem que saber muito disso - e pedir um pouco mais pode ser crime ou não: depende de quem o faz.
No verão, a chuva vem e caí rápida, mas nem por isso se sai da rua ou se para de amar. No calor da torrente, enquanto ribombam os raios lá fora, e amantes acusam suas más contrapartes, alguém, por mais insuspeito que se finja, pode tropeçar no segredo e na comédia, basta uma dose inexata de bom senso.
Ver tudo isso e sentir na ponta das unhas a música primeira de toda a sua vida, como se não fosse nada, como se valesse menos do que o beijo que só se dá à noite dos que não vivem de dia, isso é o bálsamo, a grande panacéia, basta que para isso não se tenha problemas - a cura para os sãos: não, não é a famigerada vida eterna ou o saber do nome das coisas; espero estar entre iguais que adivinham a noite no mais grotesco e disforme da graça, tal é a brisa que guia seus pés e os fazem certos na penumbra, é um santo que peca, e nos salva ao nos jogar no grande abismo.
Não temer a queda - por mais que seja mais do que isso - talvez, não cumprir quesito nenhum... sim! Suspender em plena ação toda a distância negativa do puro espectador e fazer de tudo boca, pés, mãos, narizes e ouvidos, senão em busca, ao menos despertos aos chamados mais insidiosos e inefáveis - não os da carne, mas de algo que é vário e não é espírito; sim, que é sim e é mais difícil por ser fácil.
Se a travessia acaba não é por mal. Assim como qualquer condicional é incapaz de exprimir plena pena para quem dança como quem se vinga do frio e do calor, como quem excomunga os deuses e vive da luz. Traços rápidos e secretos por discrição são por eles desferidos. Surge o não-mais, mas só como fantasmagoria de uma vida passada - o que pode valer por anos ou por dias. Precisar demais as coisas é de uma vulgaridade de amadores, mas se permitir um melhor destino pode ser de um refino implícito e incalculável, isto é, algo de imprevisto que denuncia o favor da vida e das deidades do deleite.
Pergunte à irmã que dança sobre o túmulo das injustiças passadas e veja como reverbera nela o crispar de toda uma força em contagio de si mesma. Que música é aquela que contrai seus músculos e lhe imprime um som tão claro e puro? Nada mais do que qualquer outra coisa mesquinha e suja, que qualquer vadia consegue numa dose de vodka.
Música e dança como se fossemos algo além de um só - além do um só - e que concede a marcha como um dom da tarde em plena madrugada, como se o atraso fosse algo de tântrico e já pressentido - uma marca, que empolga os pés num compasso, tal qual uma corrente invisível, que se escuta no tilintar dos seus elos - sim, a música.
Então, o amante desenganado parte para o meio de tudo, como se nunca estivesse no calor daquele fora que era o dentro de uma coisa privada e pequena. Como um pássaro preso em mãos de amor e de expressa beleza. Que sabe um pássaro das coisas dos homens? Que sabe aqueles que voam da cadência dos pés na terra? Oh, mas se plana baixo demais às vezes, o bastante para se duvidar da certeza do céu e até da própria poeira do chão - por que se apagam os traços daquilo que é tão sem história sem nenhuma maldade ou inocência? "Isso é o amor?" Desculpe, mas ele não sabia - abre as mãos do vizinho e foge como se desde sempre esperasse por isso, e parte algo que querem fazer parecer com um coração - mas não é.
Beber,  e não é mais do que passar o tempo e ter boas histórias para contar - isso é crescer? - e até que eu quero. Porém, se a Lua me bate nos olhos com aquilo que ela tem de mais roubado do Sol, como quem mostra o grande ardil que faz sustentar toda a pantomima, aí então eu digo e sumo antes de terminar a palavra. Magia antiga guarda a noite e se esconde nos lugares mais inusitados - até no álcool de pior qualidade possível.
Magia antiga impele a decisão que não se toma e sentencia os amantes à camas distintas no mais crepuscular do abraço da luz furtada no reflexo das águas - assim canta o mar revolto. Sair e ser secreto de noite é viver parte da vida de costas no mar, sentido tudo lhe cair de ressaca e de forma brusca; ter todo o sal do mundo a queimar os lábios e não se saciar jamais da dor e daquilo que se sente e não se assume, mesmo que todos vejam o nome no contorcer das feições das mais variadas partes - delírio! E acaba tão rápido e já não importa mais quem se foi antes de que se acorde. Porque.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Filosofia

Ontem eu sonhava que lhe contava tudo
e você nem sabia
Escrevi uns garranchos no escuro para não me esquecer.
Parece-me, às vezes, que o melhor da vida está no limiar da noite,
coberto de sono, enquanto me aproximo do sonho.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Diálogo

É tão bom ser bom quando minhas roupas cheiram à amaciante e o tempo está agradável! É quase como se eu ainda não tivesse deixado de ser criança. Um não sei o que de crueldade no meu calmo vigor - aquela sensação de poder parar o que se está fazendo para tirar um cochilo - e não tirar o cochilo.
Uma moral das creches e das crianças. Paredes sem cal em construção e muita poeira subindo, e eu sou alérgico. Nunca se consegue o que se quer, no fim das contas. Pois sempre se viveu o bastante para lembrar alguma coisa que não se exprime no nosso fora. Pelo contrário, parece pingar do sebo da pele.
E sem querer essa reticência estava anunciada no recuo do que eu já vinha dizendo antes de conversamos. Não, eu tento não falar do meu mais óbvio e do imediato. Senão, eu não acho que eu crio sem antes esquecer.
Posso, às vezes, esquecer dos meus números? Dos meus grupos, dos meus nomes? Não me sinto sufocado. Tenho nojo dos ofegantes pós-modernos pseudo-claustrofóbicos de si mesmos. Gosto da vida, pelo menos um pouco menos do que mim mesmo. Mas se eu não esquecer, acho que eu não crio.
Criar não é escrever, ou pintar, ou compor, ou cantar. Tudo isso é só mentir, e mentiras são ótimas, adoro todas elas, quanto mais refinadas melhor.
Porém, adivinho nos ossos, no que de meu há em rocha, que algo qualquer pode ser trancafiado em algo novo. Certos momentos em que canto ou no próprio sexo mesmo. Vejo que começo a digredir, mas não me psicologize. Precisaríamos de mais de um psicólogo, porque eu já fui muitos.
O café está quase pronto e as frases estão cada vez mais curtas. Já faz tempo que eu te escuto e não te respondo. É que você me conhece tão bem, quase sempre. Que nem uma ladeira que eu subi há muito tempo atrás, por nada. Pode-se dizer que então eu flanava acompanhado.
Eu flanava enquanto quem me acompanhava se lembrava de algo não propriamente esquecido, que ardia na pele viva até queimar. Agora, sem nenhum motivo, isso me vem a cabeça e sinto que crio. Isso não quer dizer que nada disso aconteceu, mas é algo mais, entende?
Acho que se eu não quisesse, me lembraria até dos mais pequenos detalhes e nem inventaria nada, só me recordaria. Não, não me lembro do dia exato, apenas do ano e de que era de tardinha. Saberia reconhecer o lugar e sei até o nome, mas não da rua.
- Você sente pudor? Você me olhou um tanto de lado, como que se isso lhe pesasse mais do que você se desse conta antes de dizê-lo. Não me olha nos olhos há um tempo, desde sempre que nos falamos à tarde na cozinha. Será que já lhe tinha contado a mágica que me toma quando tome cafés em cozinhas alheias? Achei melhor lhe responder.
Sim, é como se uma pessoa pudesse me escutar. Não me importa que não escute, mas eu gostaria de pensar que estamos num jogo, eu e ela. E que não tem nada a ver com ganhar ou perder, mas algo acabaria se eu lhe falasse mais. Prefiro assim.
- O jogo vai acabar algum dia?
O que tinha para acabar já acabou há muito. Por isso é um jogo. Não acaba nunca porque sequer começou. Quem o joga, na verdade, somos eu e você.
- Parece até que há algo de segredo e traição nisso. Acho que você está me enganando... o café acabou.
Não quero mais falar nada.
- Então eu posso falar, enfim. Você não sabe se pontuar muito bem. Não que eu o faça, mas no meu caso não tem muito problema. Sei dar melhor entonação do que você ao que digo, porque não dependo tanto assim de outra pessoa para saber o que eu sinto de mim mesmo.
- Realmente gosto desse frio. Antes de você chegar, separei uns três discos para escutar bebendo um vinho. Você sabe que não sou o tipo de pessoa que faz isso, mas acho que quero brincar de sentir nojo de mim, um pós-moderno asmático, ao menos por hoje. Gosto de frio fora de época.
- Por que você não volta a ler Heidegger? Ou qualquer outra coisa na verdade. Você também parou de dançar. Não que veja uma ligação entre os fatos, mas sinto que algo mudou. É, só dá para um de nós falar de cada vez. Não parece ter outro jeito.
Por favor, continue. Sabe que gosto de te ouvir falando. Poderíamos ficar assim por horas. Mesmo que daqui há pouco eu me fosse embora.
- Você não tem jeito mesmo. Acho que sei agora de quem falava há pouco. Acho você de uma puerilidade adolescente que beira o imperdoável. Você é quase um daqueles acadêmicos esquecíveis que surge no fim-de-século. Tem algo de "quase" e "preguiçoso" em você. Acho que é isso que faz você gostar tanto da vida à noite.
Vou pegar os biscoitos, estou com fome.
- Ótimo, não temos muito tempo até que ele chegue. Não gosto quando vocês se encontram. Ainda mais agora que meu cabelo está grande e fica mais fácil de perceber. Não ria, é uma das fatalidades de minha aparência.
Ele sabe que você não gosta de mulheres, então qual o problema?
- É algo mais, e você sabe disso. Não preciso subir uma ladeira com você (aliás, você já tinha me contado essa história em detalhes, quando ainda era um fato da ordem do dia) para que algo proibido o ameace. Ontem mesmo nós conversamos.
- Estávamos na cama e ele falava de você. Tenho quase certeza de que ele gosta de você. Entende; a situação é mais complicada do que parece.
Entendo perfeitamente. Você parece que quer odiá-lo com todas as suas forças. Será que se você não é capaz de se fazer infeliz como antes, você o forçará a fazê-lo. Não seria amor do contrário. Esse tipo de coisa não vem de outro lugar que não um leito pleno e compartilhado. Você diz que mudou, mas você nunca foi quem você achava que era antes.
Acho que você fracassou. Você está amargando e nós trocamos de lugar. Sinto a minha voz mais forte e sei que te domino agora. Mas isso não se diz, é crasso. Acho esse um som apropriado para mudarmos de assunto. Não quero me intrometer na sua feitiçaria de infelicidade mais do que já fui sem o saber.
Você se lembra do dia em que nossos pais se conheceram por acidente? Foi em algum feriado em que resolvemos ir ao cinema em família. Seu pai sempre foi mais esperto do que a sua mãe e muito mais do que os meus juntos. Lembro-me de que ele me atraiu bastante naquela noite, enquanto jantávamos todos juntos naquela pizzaria.
Eu o via suar enquanto tentava acompanhar nossa conversa, nossas piadas e nossas referências. Ele sentiu o secreto que estava sempre entre nós. Pelo menos até você conhecer o Rodrigo (não, isso já deixou de me incomodar há tempos). Enfim, ele era um homem sensual e inteligente. Sua mãe sempre me deu a impressão de ser uma velha feliz com o seu marido, como quem tem uma vela que queima um fogo manso e assertivo, com tom de conforto.
- Você é de uma fatal deselegância. Gostaria de dizer que isso me fascina, mas não é o caso.
(Se deitaram e beberam vinho, enquanto ouviam música, prestando atenção na sombra das coisas à luz da lâmpada em plena tarde de verão. Um pequeno idílio secreto, uma fuga de nada, um quedar estático - quantas coisas não se dizem ao chegar a uma palavra para elas)

domingo, 1 de janeiro de 2012

Sanctis Januaris

E o cheiro que me faz posse é o de meu sangue vertido pela navalha dos dentes enfileirados em ganas e garras. Osso na carne e não muito mais do que a matemática primeira dos biólogos e dos afetos. Mas é que, às vezes, isso nem sequer parece se gastar. Então eu já não me basto mais.
Então eu já não lhe basto mais. Porquanto eu fora aquele cuja temperança lhe servia de andrajosa muleta, cuja virtude estimada não o era por você menos do que todas as somas dos infindos deleites do palácio - então, eu lhe tinha.
Essa é uma cruel verdade. Aliás, qual a verdade que não se firma com o gravar do fogo na pele queimada? Eu lhe tinha e não o contrário. Quanto tempo eu tive que dormir para poder sonhar que não era assim? Toda uma pré-história que até hoje eu me minto de gulodice - como quem rouba um doce e não quer as calorias; como alguém que só quer roubar algo do mundo; espere. Melhor, como alguém que quer tirar algo que está no mundo e levá-lo ao além desse mesmo mundo, até o seu nunca-mais.
Assim eu roubo tudo que brilha aos meus olhos, até o seu lixo. Eu sempre salivei com o seu mais pequeno, e descartei o que poderia ser visto como o mais precioso - e ainda nem é ano-novo.
Mas, tudo tem um dia em que acontece. Em torrentes, quase uma monção. E não tem muito mais do que as coisas todas acontecendo de uma vez, tão grande que quase não tem tempo para te contar. Porque você vê que os meus olhos tem um espectro de cores foscas e malvas, quase sempre num azul-marinho - mas entender não lhe faculta a magia.
Não que seja algo de grande ou até de bom, mas é. Não que também muitas coisas não sejam, mas a magia que meus olhos não veem em cores é além do mais e menos das outras coisas. É sem terminar, apesar de eu me mentir a certeza de que começou.
Ah, mas você não capta a sutileza das membranas que eu tenho sob a pele dos dedos. A grande rede nervosa de contatos que um estranho me causa no seu soslaio próximo e imberbe de um beijo no escuro - e, às vezes, até as mulheres. Sim, até mesmo isso - só por que não é eu e nem a mágica por ela mesma. Agora, à fórmula, se adenda você. Tem que não ser eu, você ou a mágica para acontecer.
Sobe entre as veias e o ar tudo aquilo que me decepciona, que me inspira, que me relega a um baixo de depressão, que enterra meus pés em areia e terra antigas e fofas - receita para a fertilidade. É quase tudo de graça, no fim das contas, não tem recibo e nem garantia tudo aquilo que recebo de minhas próprias entranhas, mesmo aquilo que me mata e me ganha de volta para mim mesmo.
Tudo isso e menos é o que eu vejo nessa pequena e inocente fagulha mórbida do desejo incessante. De algo que eu não quero e nunca quererei, mas que me alveja de máscaras mil para dardejá-la à noite, como quem dedilhasse as cordas primevas que acordam do sono de morte, o amado de um eterno vesper. Isso dentro da ponta do meu dedo, perdido, traficado num toque elétrico e mecânico. Às vezes, para as paredes de um banheiro, enquanto eu fedo a cigarro e outras drogas.
Mesmo quando eu acordo e o cheiro - ele continua, saiba - e eu ando até o ponto de ônibus - pois, sempre há uma cama para mim em braços amigos que se cambiam como as águas de uma corrente jovem em ânsias de cavar seu desaguar na praia - e sei que me olham como estranho e invisível. E rio em vitória da impossibilidade da minha redenção como quem se risse de uma piada horrível e infeliz - como a castidade.
Sei que se pudesse, eu preferiria falar em enigmas, mas a mensagem em meu discurso segue reta em sua opinião até o alvo tencionado. A dor é mancha clara num alto-relevo da pele! Inexpugnável, pois não é espelho - é qualquer coisa de través que não nos faz dizer "Não" quando seria desejável. Há sempre um pouco na dor que é lascivo, mesmo que muito pouco, pois é ancestral e, portanto, o que há de mais emergente em nossos rostos, assim como o são as rugas dos risos inocentes da infância, as mais estampadas nos rostos velhos e cansados de um jovem burocrata.
O trânsito crepuscular do ano findo é breve e engarrafado: será aquilo, até que pare de se vomitar. Algo como um pequeno desagrado. Mas o que é isso para aqueles, que como nós, podem muito mais? Será que nós riríamos da plateia, se ela fosse possível? Não, mais até que isso. Agora é outra hora, e pede da noite um movimento outro, e vem a fuga.
Uma gota presa na boca da minha alma, água suja e envenenada que a física impede que caía. Verter é para as grandes chuvas que iniciam os tempos. O que tenho é uma ressaca de ano-velho e as mãos nuas. Sacolas vazias e palmas desfraldadas de Santa Ritas nas ruas de Copacabana - entende-me quando falo que, às vezes, tudo acaba e não é mais do que muita coisa?
O que tenho não é entulho emocional, apesar de não ter mais medo do que é feio e troncho em mim, como se adivinhasse a velhice decadente que se precipita em mim quando engordo, ou quando meu cabelo se quebra em um fio nas suas mãos, tão macias.
Quero mãos ásperas, quero ser imolado, eu quero sexo e quero ser de um deus. Desses que surgem de noite e cobram sacrifícios em sangue negro e traficado no revés do coração e do carbono. Alguém, que não alguém, para me dar a máscara na qual o meu rosto pode enfim crescer, até que não-mais.
Pode haver em mais de uma noite em fuga, mais amor do que em uma cascata de gestos despropositados e sem sentido. E eu sou um daqueles que os conhece e os deseja mais do que ninguém-outro-predador -
- Vejo o meu rosto na água furtada das rosas na calçada e na face da Lua. E mesmo quando acordo do seu lado, eu não sei até mais onde eu posso. Até que eu penso que eu corro, e o dia ainda começa com o meu café e o meu pão. Eu não envelheço, mas alguma coisa em mim vai ficando sedimentada. Eu me torno a música que eu cantei há muito tempo atrás antes de toda a vida de mim agora.