segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

The Dreaming

De novo. É a mesma casa e é a voz da meia-noite que fala comigo e por mim. Ela mesma que falou pelo meu corpo convoluto em pranto. Volteava a meia-noite naquele dia que eu chorei nos braços dele, sem ele, mas apesar de seu contato tosco e opaco. Era ela que sempre imprimiu a marcha solitária de meus passos não andados. E ela que me fazia agora levantar e deixar o novo leito.
Será que eu irromperia, dramático, nos braços de meu amante, após um lapso esteticamente apropriado de tempo considerando visões cristalinas vazias pela janela da sala? Não, eu simplesmente faria aquilo que sempre marcou os meus amores que eu temi: sentiria no tato das mãos dele o áspero da lixa que me raspa o morto das mãos e me erode pouco a pouco, como se eu fosse geológico e antigo.
Quando agora sou mais novo do que nunca; no que há de mais meu e superficial, que revele o antigo que, por tanto tempo, correu e me sedimentou em rios de areia, canais secos e áridos, onde vida nenhuma crescia...
- A porta se abre. Há um inseto morto sob o meu braço. Mudei o cenário.
Mas agora eu volto a meu amor imaginário, nessa noite em que não sinto o seu abraço erosivo. A corrupção do amor e do sangue naquilo que chamo primitivamente de vida. Na sua mão encontro os mais breves e tácitos segredos. Nas mãos do meu homem, nem que seja meu  só por uma noite apenas, eu encontro o futuro que eu destruo, clandestino, todos os dias. Minha crueldade chinesa.
Sobre qual linha de vidro quebrado equilibrarei meus pés nessa mais árdua travessia das agruras cotidianas? Que tom de roxo nublará os meus sonhos e delírios até serem todos eclipsados pela glória de minha derradeira queda no que há de meu imo e que me petrifica; meu coração são os olhos de Medusa. Com eles impressos no meu escudo, afasto os inimigos indesejáveis - paro os outros eu me cego, sou minha própria esfinge.
- A porta se abre um pouco mais, lentamente, como se a vida tirasse prazer de me amendrontar. Tenho medo confesso e fecho a porta. Mas é tarde de mais, eu vi o rosto no escuro da minha sala, no coração da minha casa. no círculo mais íntimo do meu banal. Tudo desmorona agora, tudo é fantasia e escuridão no sussurrar do ventilador e no tilintar das persianas. É o medo do Deus que me consome em ganas de fúrias e deleites vespertinos ceifados no gozo da antevéspera. Tudo pode acontecer, o Rei está morto. É o reboco do mundo pego em suspeita e inacabado.
- Por mim, dentre todas as pessoas do mundo. Os cães me seguem, uma matilha ensandecida pelas matas cinzas e asfaltadas. Para despistar o destino, jogo meus sapatos na água. Agora, corro e me machuco. O medo passa, o mundo volta ao normal. Volto ao meu amor e seus dedos de lixa.
... que me lixam os pés tão bem e lentamente quanto fazem com as mãos? Quanto sangue secreto eu verto na língua de um gato, se ele me banhasse como quem visse um duplo num espelho, como quem tivesse nos olhos um intricado jogo de espelhos que reduzisse dois corpos a um só?
Sonho e realidade se mesclam, seus filhos são os deuses mais terríveis. São legião. Eu os chamo "mistério" por reverência e ignorância. Tenho medo, mas já não é o pavor de antes, aquele congelar de ossos triunfal que vem de antes do tempo e de seu todo. Vem antes dos prazeres escondidos da infância, vem antes do cheiro de homem que me cativa.
- Por qual voz eu falo quando não me conheço e tudo caí de uma só vez? Isso tem uma imagem e não é uma só, é um vespeiro. Não. É um formigueiro que escraviza os vizinhos e coloniza o que há dentro das paredes, em conluio com os ratos. Os sonhos dominam o subterrâneo da vida. Me perco em minúcias de perspectiva.
Acabou. Posso voltar ao meu calmo idílio de mar turbulento. Porque o que não se chegou ainda a conhecer é menos terrível do que o que não se presta a tal exercício. Entre as sombras e os deuses, Platão quis mancomunar com os últimos, mas caiu na rede dos primeiros.
Será que sangro com o duro das mãos de meu amor? Como que meus beijos tivessem do ferro o gosto extraído do meu sangue. Que imagem terrível, mas sem a necessidade daquilo que de fato é terrível - os deuses mudos.
Não consigo mais voltar ao meu primeiro caminho. Despertei do pesadelo no meio do seu caminho. Sem o feitiço do sono ele não me assusta mais, mas ainda não posso dormir, há algo errado que eu posso surpreender em meu quarto  e talvez eu tenha que descobrir o que seja antes de me deitar numa cama outra
- Voltou. Eu sinto no calor do pé, mas ele não sobe. É como se minhas veias tivessem sido entupidas de carbono o bastante para envenenar o medo. Eu venci? Não, nem mesmo a derrota também. O medo vence pela eterna contenda que ele instaura. O medo é uma música que ninguém escuta quando vê um filme. Ou quando dorme abraçado com alguém. Enfim, é uma ótima companhia para a sua morte, pois ela se põe à sua direita, enquanto a outra vai pela esquerda.
Isso não tem que fazer sentido. Eu tenho é que sobreviver e sentir o fluxo. O momento ideal em cristal que me pôs aqui para isso. É maior do que tudo isso e cabe no espaço em braco entre duas palavras, ou no espaço entre as curvas das letras.
Passou. Eu acho. Acabou enfim até que volte. Até lá, eu terei me enrolado mais uma vez nos
- Um novo e terrível som. É o som do além-do-mundo. O após os dias dos dias que vivo. Não há canção para as horas mais negras nas quais as hordas do mundo cru, do mundo sem homem, surge e me carrega sem que eu saia de minha cadeira gasta. Eles me levam por seus dutos escuros e úmidos, abafados e suas mãos são todo o chão que rala as minhas costas e pernas, enquanto eu grito, interrompido, no nó de minha garganta muda. Eles me levam, pequenos, até o santuário profano que eu não tenho como descrever.
- Não é humano. Nele acabam todas as artes e fés, toda a filosofia e mnemotécnica da dor. Lá vivem os deuses em seu império sem dor e nomes. Os deuses são bestas cegas, são vacas sagradas que me olham negros e absolutos em sua graça abestalhada e bovina.
- Podem me devorar, mas não fazem nada que eu possa dizer que saiba o que é. Eles não podem me tocar. Eles querem, então, que seja eu quem me mate. Pois senão eu também seria um Deus. E eu jamais saberia ser uma vaca. Tenho que dar um fim nisso, mas a pressão das correntes é súbita e desaparece. Logo, ela volta e eu já sei o que eu estou pensando e não posso - ainda tenho esperanças de dormir de novo.
Voltar ao primeiro lugar da infância. Ao tempo do grande medo do mundo e dos monstros - que sempre eram todos os monstros - e ver o reboco e a poeira do mundo que morre a cada dia. Que eu mato a cada dia, como quando matei homicida o eu antigo que eu era e que tinha que morrer antes da hora, para que um outro eu mais novo e melhor pudesse viver. E não se surpreender vendo a serpente-mundo trocar de pele. Crepuscular sensação que me toma ao considerar vivas todas as coisas ermas desse mundo de brumas.
- E tudo começou como uma brincadeira inocente, sabe? Eu só queria um beijo dele e achei que me satisfaria com isso. Mas eu não sei me apaixonei, eu não sei como eu funciono com isso. Ainda mais agora. Nunca tive o bastante para ser um inocente, acho que sou idiota apenas, como quem não sabe o bastante para saber algo, mas mais do que o que se precisa para não sofrer quando vem a dor. Eu não. Eu penso.

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