quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Conversation piece II

   A sala é grande e espaçosa. Cenário de uma vista fortuita. Toda aquela noite do apartamento é cortada pela luz do que lhe fica em frente. Passos parecem separar as duas salas; passos a separar as sombras da luz. Mas, há um abismo.
   Das suas sombras, ele olha para o apartamento iluminado. Nas grandes cidades, a noite nunca vem ela toda, simples. Ela se esgueira no rés do chão das ruas, por onde a sorte das pessoas se perde. Mas, agora ele via a luz do apartamento em frente ao seu. Distante, não mais do que uns poucos metros em linha reta. Uma linha reta que não existe para os seus pés.
   Outro dia, qualquer coisa de ruim rondava sua casa, mesmo de dia se sentia. De frente ao imperturbável amarelar da varanda do vizinho, qualquer coisa de conforto lhe fazia sorrir, mesmo que sem muito ânimo.      Era como se não se pudesse confiar em muita coisa naquela hora, por mais claro que os vizinhos fizessem a noite. Para se dormir bem, ele tem que fazer a noite vir ela todinha, mesmo que espremida, para algum canto fresco e mole do travesseiro. Aí, tudo ficaria bem.
   Ele não gosta de pensar nas pequenas coisas do dia que só ganham corpo de noite, como as baratas. Seu apartamento estava cheio de baratas pequenas. De noite, elas eram todas as baratas da noite e do mundo na sua cozinha. Ele não usaria mais aqueles pratos. Estavam sujos. E assim permaneceriam para sempre.
   Ele achava muito impressionante que o destino fatal dos pratos estivesse decidido assim tão fortemente. Talvez, ele conjecturava, não houvesse nada mais de seguro além disso. Esse era um pensamento de conforto. Não era para esse tipo de coisa que ele vivia como vivia. Ah, mas algo estava para acontecer.
    Mesmo sem nenhuma lâmpada acesa, sua sala era costumeiramente iluminada pelas luzes da rua, abaixo os andares. Algo nas arquiteturas cruzadas de anacronismo das cercanias fazia com que a sala iluminada do outro lado da rua parecesse torta. Como se um barco afundasse com uma cabine iluminada por cima, seu último grito de resistência frente ao fim. Entretinha-o contemplar os restos suspensos de um naufrágio.
    Ele sabia esperar. Alguma coisa soprou sem ser sentida por ele. Encadeando, no entanto, toda uma rede de processos, que também lhe passaram ao largo. Por fim, sentiu sede e se levantou para beber água da garrafa da geladeira. Na volta, passou pela sala e não mais se deixou obsedar pela vista. Notou apenas que sua janela era muito grande. O que era muito ruim, por que não havia como se resguardar do Sol da tarde. Mas era noite e ele cansava. Dormir com um pensamento atravessado fazia mal, assim como alucinar naufrágios. As pessoas podem não perceber, mas pode-se padecer da pouca idade até que ela morra e se torne muita idade. 
    Dormindo, ele sequer desconfiava da graça de um gênio primitivo que era adorado por alguns primatas desengonçados em tempos de bruma e umidade. Ele havia voltado, como prometido aos seus fieis mais iniciados, numa nuvem de luz e de pedras brancas (uma cor muito valorizada espiritualmente por aqueles primatas meio bípedes cor de açafrão e de mandíbulas fortes e tortas - o que terminou por eliminá-los, diga-se de passagem, quando suas práticas de acasalamento foram forçadas a mudar devido à cataclismos tropicais anti-diluvianos) e queria dar algo especial para um de seus macaquinhos favoritos. 
    Por sorte, o último descendente desse par de macaquinhos, havia retornado, num ziguezague que venceu milênios, e se encontrava alguns metros acima da tumba de uma parenta sua particularmente sagaz e apessoada. No entanto, alguns milênios ainda é muito pouco para que macaquinhos aprendam algo de útil. Era muito tarde para o homem daquela casa se deixar surpreender em algo de belo e perdido.
    -Foi assim que numa noite qualquer, meu primeiro amor matou um deus macaco de belos pelos vermelhos. Ele disse que sonhava com isso todas as noites em que dormia com outra pessoa que não eu, e gozava triste. Não era dos homens mais perspicazes ou criativos. Ele sequer notou que fui eu quem lhe trouxe essa história.
       Foram os meus olhos tristes e mentirosos e minhas falas tortas e recurvas que escavaram o chão sob o seu sinteco e lhe deixaram cair naquele mundo que não era seu, se não em sonhos. Pois bem, que sirva de lição para que eu aprenda a falar menos. Ela me dizia, pobrezinha, que isso ainda iria me custar a vida ou uma das pernas qualquer noite dessas que eu me atrevesse a um desaforo e a um homem errado.
*

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Uma vez, ela viu uma pequena aberração
que saltitava entre as flores
Ciosa da tarde e de juventude,
ela correu em seu encalço
e nunca mais seus olhos
encontraram os dos outros

Hora má

É nessa hora má
que ele abriu a porta
e um brilho fundo
incomodou todos os bichos
escondidos nos cantos
dos móveis, das paredes,
dos tijolos, dos fios,
do cimento, do sinteco,
dos livros, dos discos,
dos vasos, das pias,
das roupas, do varal,
das solas e dos  seus cabelos,
que nasceu, aquém do reflexo, um mal pequeno e torto
que lhe amaria por três noites escuras
e se fartaria da carne tenra de sua paixão e inocências