domingo, 12 de junho de 2016

Pulso

Já está tarde e estamos tão longe, mas, tudo bem, que eu ainda posso te ligar. E aí já não estamos tão longe e até parece mais cedo, quando eu passei pra te dar um beijo antes de encontrar os meus amigos. Eu confesso que já estive mais confortável e, por alguma razão, eu só consigo pensar no quão cara estava aquela caipirinha. Não, não tem nada a se fazer. A caipirinha estava ruim e teria sido tão bom que ela houvesse sido melhor, sabe? Escuto uns barulhos de vez em quando. Tem gente do meu lado, mas nem nos olhamos - só quando fica muito silêncio e o coração aperta mais forte. Será que tem hora certa pra acontecer? Porque a derradeira mensagem terá uma hora certa e, mesmo assim, você jamais saberá quando foi exatamente e eu sinto que você precisaria saber até o último segundo quando foi que eu deixei de olhar pras letras das palavras que você me escrevia, assustada. Você nunca pensou que veria a morte assim. Bem, pelo menos, eu sei que eu nunca tinha. Pensei que, fosse como fosse, seria rápida e eu só teria que me arrepender do que eu nunca falei. Agora, eu vejo que não importa o que eu deixo de falar ou não. Nenhuma palavra, nenhuma fórmula é mágica e me deixa sair daqui. Eu só cultivo a expectativa, a de que eu podia sair pela porta a qualquer minuto e aparecer em casa, aí do seu lado, pra chorar o que já aconteceu e que vi com os meus olhos, quando eu ainda era gente e podia me preocupar com gente. Eu sequer consigo pensar que eu não quero morrer, porque eu só consigo pensar que eu vou morrer. E que a caipirinha estava muito ruim para ser a minha última. E que eu não tenho nada inteligente pra dizer, só que eu vou morrer. Eu vou morrer. Te amo, mamãe

domingo, 20 de março de 2016

Condomínio

O despudorado quis um dia pegar
as coisas se desfazendo
vê-las se despedindo das outras, 
sem ninguém notar
mas percebeu que elas iam prum lugar
que todas elas sabem qual
menos as gentes que ficaram pra trás

As coisas deixam as gentes que têm as coisas
pensar o contrário
é fingir que não é a gente que se acaba um dia
no meio das coisas
sem que ninguém tenha vontade de ver
A gente se desfaz
enquanto a vida dos outros acontece ali ao lado

Eu já acabei uma vez, belo dia,
morava ao lado de um sujeito
e a única certeza que tinha antes
é que nem isso ia aplacar o ódio
que a mulher do sujeito sentia
pelo fato de eu não ter morrido
muito antes d'ela ter me conhecido

Se a gente visse o mundo com os olhos das coisas
veria o sangue marcado no chão
com cada coisa que essa gente faz quando inventa
que faz bem morrer devagar

sexta-feira, 4 de março de 2016

Uma noite

Uma noite qualquer
vai me custar mais caro
que eu não recebo mais
o teu beijo não dado

Uma noite mais assim
vai me custar bem mais
que todos os seus beijos,
saí sorrateiro, nos shorts vermelhos

Uma noite bem como essa
ainda vai me custar bem caro
que os carros passam rápido
e me gritam "olha o viado"

Uma noite bem como essa
ainda vai muito me amargar
que eu vivo no sangue marcado

Numa noite qualquer
tudo aconteceu muito rápido
e o perigo passou aí ao lado