Ria tolamente para si, enquanto testemunhava o final de mais uma noite. Fora em si, sozinho, uma orgia, no seu proceder sorvido em vapores de oferenda à Dionísio, mas tão cedo se fez o dia, ele se apagou como um incenso e se reacostumava ao real cheiro do ar.
Andava e guardava a cabeça baixa, cônscio do tesouro que carregava nas lembranças recentes, como se receoso de que as furtassem ao adivinharem as sensações.
Por que, afinal, este lhe era um agir ainda estranho. Esse trilhar coletivo de emoções pequenos e vitórias tão mínimas que nem se podem ter como mesquinhas lhe era novo e desejável como novidade. No fundo, protegia esse maravilhamento com si e com a vida do que o que propriamente se deu. No mais, era todo doação à atmosfera, cedendo cada gota de suor à umidade mística que facultava a ocorrência de uma noite tal qual aquela que tinha se passado.
A rua era longa, mas era uma curva longa e não acentuada contornando a orla e isso o tranquilizava. Essa exposição à um destino certo e fácil lhe dava um conforto que corria paralelo sem se conflitar com a dor que sentia nos pés e nas costas.
Como eram divertidas essas pequenas revoluções, saltos de pulgas que provocavam no bater do coração uma certa arritmia de sensações e lhe faziam ser todo olhos e língua e ser nú por debaixo das roupas. Nunca fora tão fácil me fazer companhia, ele pensou.
O olhavam como encarariam um guerreiro que voltava do campo de batalha ainda orgulhoso da armadura outrora imponente, agora escangalhada e suja de sangue. Será que sangrava? A dúvida não lhe era séria e só aumentava seu contentamento cretino. Por que ser sério? Por que perguntar e ver, e não apenas olhar passivamente? Não importava mais, teria que seguir até o fim como a espuma do mar que se quebrava em luzes nesse início de manhã e não se materializar em nada, permanecendo uma crisálida insólita, cuja essência era arrastada pelas ondas até as reentrâncias da noite que passou.
Essas noites sem sono fora da cama, cada vez mais frequentes, não chegavam a lhe inflingir uma dúvida, mas fomentavam o crescimento de uma verdade em bolha, que não tardaria muito a se turgir e em pus cobrir todas os dogmas que até então lhe eram diretrizes finais e cabiveis à suas verdades raciocinadas.
Seria uma verdadeira revolução racional isso. Ao se descobrir mais animalesco, primitivo e imediato do que realmente achava ser - ou ao menos uma face que assim se mostrava em suas linhas e lábios - toda sua anterior síntese do que ele era também era passível de se mostrar errada, exterminando assim as maravilhosas quimeras que lhe pululuavam a mente e o faziam crer em anjos e demônios sem céu e inferno, só culpa e tempo em gravidade, que o quedava imóvel e atolado em consciências enlameadas e pastosas.
Não mais, por que, oh, mas sim; era tão pequeno! Tão simplesmente e livre tolo! Sofrera até então por que se levara a sério demais, mesmo quando se desacreditava e se subtraía - por que no íntimo se traía? Porque acreditara em nada que fosse divino ou satânico, ou sequer terrível, como o elo que os unia, apenas acreditava que era culpado, aceitava o pecado sem crença e anônimo, que lhe pesava o sexo como chaga. Assim, se diminuía todo, pois era dotado da perspectiva daquilo que se crê integrado num universo, mas tinha essa linda visão, que o tornava tão irmão daquilo que era mínimo como uma formiga e eterno e sem fala como uma rocha, deturpada por essa culpa, talvez, tenha lhe sido a real placenta, constituíndo-o então, mesmo recém-nascido, um ser com toda a carne em culpa! Não mais.
Era agora acessível a si mesmo, capaz de ver as linhas que permeavam os movimentos do que vivia - que nem ele agora vivia - ou de, mesmo quando não cansado, apenas enxergar a maravilha compacta do que era andar e dar passo após passo e o mundo não acabar. Pois se anda sobre uma esfera. Não é mera coincidência que essa também seja a forma do planeta, pensou com paixão e geometria.
A cada velhice e infância que vivia nos segundos da manhã e tarde e noite que se seguem em aparente ordem, as distâncias se mantiam iguais do centro, da origem. E ele podia voltar, já que havia matado os falsos ídolos, o antes e o depois, e no altar-coração do interno só honrava o sempre e o não-sempre, o instante efêmero, que não se deve confundir com o mito do nunca. Pois nunca tinha sido tão fácil entender, como ele entendia agora a cada bater do seu coração, sentido-se delimitar pelo sangue que ia até as suas pontas, se sentindo reflexivamente sentindo a si próprio era um tato tão caro e múltiplo, que teve receio - mas não medo - de se desfazer diluído e dissolvido no contato com o mar que molha salgado dentro do ser.
Seguia o entorno da orla e o Sol já brilhava alto e lhe sorriam os ossos ao contato do calor primordial, pois os animais a sua maneira também podiam se alimentar, mesmo que só filosoficamente da luz. Imaginou o quão belo se fazia agora que podia se amar de forma tão leve e sem tragédia, sabendo que podia ser feliz só porque também podia ser igualmente triste e isso era tão desejável quanto prático. O mistério não se impõe entre o eu e o entendimento, pelo contrário, o misterio é a extensão esotérica dele, e talvez ele quisesse crescer místico, mas a ciência de que em gênese era simples a verdade, e que ele nasceu dela, tal qualquer coisa que é, mesmo inorgânica, lhe libertava, não das tristezas mas do sofrer exacerbado e orgulhoso. Chorava lágrimas contidas pelo funeral de seu orgulho, o pecado mais forte e corpóreo porque nasce apenas na culpa e na falsa aceitação dela. Agora, sabia e aceitava a verdade sensorial e imediata como uma cor e um cheiro de impossível descrição mas de inata compreensão. Se fez tão leve que se perguntou se os pássaros também não principiaram por andar semelhantemente tão leves que por fim acabaram por voar?
Chegou em casa, banhou-se e comeu. Tudo tão intransitivo, mas tão direto, que dormiu e só acordou muito depois que abriu os olhos espantandos e se viu numa casa que não a dele, repartindo de uma cama e um amor que não lhe eram estranhos. E não teve medo, só se levantou e escovou os dentes.
Andava e guardava a cabeça baixa, cônscio do tesouro que carregava nas lembranças recentes, como se receoso de que as furtassem ao adivinharem as sensações.
Por que, afinal, este lhe era um agir ainda estranho. Esse trilhar coletivo de emoções pequenos e vitórias tão mínimas que nem se podem ter como mesquinhas lhe era novo e desejável como novidade. No fundo, protegia esse maravilhamento com si e com a vida do que o que propriamente se deu. No mais, era todo doação à atmosfera, cedendo cada gota de suor à umidade mística que facultava a ocorrência de uma noite tal qual aquela que tinha se passado.
A rua era longa, mas era uma curva longa e não acentuada contornando a orla e isso o tranquilizava. Essa exposição à um destino certo e fácil lhe dava um conforto que corria paralelo sem se conflitar com a dor que sentia nos pés e nas costas.
Como eram divertidas essas pequenas revoluções, saltos de pulgas que provocavam no bater do coração uma certa arritmia de sensações e lhe faziam ser todo olhos e língua e ser nú por debaixo das roupas. Nunca fora tão fácil me fazer companhia, ele pensou.
O olhavam como encarariam um guerreiro que voltava do campo de batalha ainda orgulhoso da armadura outrora imponente, agora escangalhada e suja de sangue. Será que sangrava? A dúvida não lhe era séria e só aumentava seu contentamento cretino. Por que ser sério? Por que perguntar e ver, e não apenas olhar passivamente? Não importava mais, teria que seguir até o fim como a espuma do mar que se quebrava em luzes nesse início de manhã e não se materializar em nada, permanecendo uma crisálida insólita, cuja essência era arrastada pelas ondas até as reentrâncias da noite que passou.
Essas noites sem sono fora da cama, cada vez mais frequentes, não chegavam a lhe inflingir uma dúvida, mas fomentavam o crescimento de uma verdade em bolha, que não tardaria muito a se turgir e em pus cobrir todas os dogmas que até então lhe eram diretrizes finais e cabiveis à suas verdades raciocinadas.
Seria uma verdadeira revolução racional isso. Ao se descobrir mais animalesco, primitivo e imediato do que realmente achava ser - ou ao menos uma face que assim se mostrava em suas linhas e lábios - toda sua anterior síntese do que ele era também era passível de se mostrar errada, exterminando assim as maravilhosas quimeras que lhe pululuavam a mente e o faziam crer em anjos e demônios sem céu e inferno, só culpa e tempo em gravidade, que o quedava imóvel e atolado em consciências enlameadas e pastosas.
Não mais, por que, oh, mas sim; era tão pequeno! Tão simplesmente e livre tolo! Sofrera até então por que se levara a sério demais, mesmo quando se desacreditava e se subtraía - por que no íntimo se traía? Porque acreditara em nada que fosse divino ou satânico, ou sequer terrível, como o elo que os unia, apenas acreditava que era culpado, aceitava o pecado sem crença e anônimo, que lhe pesava o sexo como chaga. Assim, se diminuía todo, pois era dotado da perspectiva daquilo que se crê integrado num universo, mas tinha essa linda visão, que o tornava tão irmão daquilo que era mínimo como uma formiga e eterno e sem fala como uma rocha, deturpada por essa culpa, talvez, tenha lhe sido a real placenta, constituíndo-o então, mesmo recém-nascido, um ser com toda a carne em culpa! Não mais.
Era agora acessível a si mesmo, capaz de ver as linhas que permeavam os movimentos do que vivia - que nem ele agora vivia - ou de, mesmo quando não cansado, apenas enxergar a maravilha compacta do que era andar e dar passo após passo e o mundo não acabar. Pois se anda sobre uma esfera. Não é mera coincidência que essa também seja a forma do planeta, pensou com paixão e geometria.
A cada velhice e infância que vivia nos segundos da manhã e tarde e noite que se seguem em aparente ordem, as distâncias se mantiam iguais do centro, da origem. E ele podia voltar, já que havia matado os falsos ídolos, o antes e o depois, e no altar-coração do interno só honrava o sempre e o não-sempre, o instante efêmero, que não se deve confundir com o mito do nunca. Pois nunca tinha sido tão fácil entender, como ele entendia agora a cada bater do seu coração, sentido-se delimitar pelo sangue que ia até as suas pontas, se sentindo reflexivamente sentindo a si próprio era um tato tão caro e múltiplo, que teve receio - mas não medo - de se desfazer diluído e dissolvido no contato com o mar que molha salgado dentro do ser.
Seguia o entorno da orla e o Sol já brilhava alto e lhe sorriam os ossos ao contato do calor primordial, pois os animais a sua maneira também podiam se alimentar, mesmo que só filosoficamente da luz. Imaginou o quão belo se fazia agora que podia se amar de forma tão leve e sem tragédia, sabendo que podia ser feliz só porque também podia ser igualmente triste e isso era tão desejável quanto prático. O mistério não se impõe entre o eu e o entendimento, pelo contrário, o misterio é a extensão esotérica dele, e talvez ele quisesse crescer místico, mas a ciência de que em gênese era simples a verdade, e que ele nasceu dela, tal qualquer coisa que é, mesmo inorgânica, lhe libertava, não das tristezas mas do sofrer exacerbado e orgulhoso. Chorava lágrimas contidas pelo funeral de seu orgulho, o pecado mais forte e corpóreo porque nasce apenas na culpa e na falsa aceitação dela. Agora, sabia e aceitava a verdade sensorial e imediata como uma cor e um cheiro de impossível descrição mas de inata compreensão. Se fez tão leve que se perguntou se os pássaros também não principiaram por andar semelhantemente tão leves que por fim acabaram por voar?
Chegou em casa, banhou-se e comeu. Tudo tão intransitivo, mas tão direto, que dormiu e só acordou muito depois que abriu os olhos espantandos e se viu numa casa que não a dele, repartindo de uma cama e um amor que não lhe eram estranhos. E não teve medo, só se levantou e escovou os dentes.