domingo, 20 de novembro de 2011

Medo


É sempre o medo do feio e nada mais. Mesmo agora, que eu posso olhar pela janela e não fazer nada nem quando eu faço de fato, eu tenho esse fantasma e o carrego imo amuleto no peito.
Se chovem os dias e as noites até que não mais, será um mistério esse do fantasma que não assombra, esse do medo morto? Que eu matei meu medo, sozinho, numa noite dessas, que sequer cumpria o mínimo de um ritual profano e antigo, isto é, que sequer silenciou todos os pequenos sons e sonhos que o não-eu adivinhava os degraus da escada do lugar que nunca foi a cama da minha cama às madrugadas todas?
É, mas eu o matei, eu acho. Pois não o sinto e o procuro ainda. E é tão sem tristeza e saudade, é quase como uma coisa. A ideia da coisa, por quê não? Sequer me ardem espinhos nos dedos ao desvelar o puro sólido dos grãos aos pés - eu não irei colhê-los.
Mas aí que vem o segredo. O segredo não é um fato, se faz no silêncio, essa é a metafísica das verdades primeiras - é falar da morte e sentir a vitória; deitar na areia e beijar a donzela acometida pelos ventos inclementes de serafins invejosos de um maior amor do que o da criação engendrada. Silêncio é por onde se dá a volta no tempo e dá sentido à música.
E boa música é aquela na qual nunca se sabe se se comemora o som, ou se celebra a sua morte, ou os dois, talvez. Não sei, sínteses tais como essa me cheiram a trapaça, mas duvido muito de que a vida não seja a maior trapaça de toda a pré-história - como se tivesse vida antes da vida.
Talvez fosse esse o fantasma que me assombrava as noites de criança; que eu estava sempre com medo. Meu primeiro amante, o medo me paralisava na cama e eu tinha de dar meu melhor para superá-lo, as artes da corte estrepitosa (apesar da fagulha redentora só se dar muito depois, além dos olhos cor de areia e de mar das noites sem sujeito de qualquer um que tenha a fome de amor).
Deitava solene para um medo que era só meu (e isso o fazia não só mais medo para mim, como me fazia mais eu para o medo) e eu era tão pequeno que o meu medo podia me acabar de uma só vez. Isso era o sonho, que quando incapaz de me satisfazer não era pesadelo. Se eu lesse então, mas eu era pequeno, novamente, e aquilo era um pesadelo de criança, o mais terrível, pois é o mais real de todo. Tão bem um adulto não teme o sono, um velho não teme o sexo, e aí que está toda a tragédia da cultura ocidental - chamaria isso de tempo, mas aí estaria sendo mais repetitivo do que não gostaria de ser.
Fechar os olhos e ver os monstros, monstros que sempre foram todos os monstros. Acordar a salvo numa manhã de terça-feira e se lembrar de que antes do tempo bater um segundo sequer em contas de grãos de areia, eu era além de tudo o fogo desse medo era muito. Disso surgiu o grito mudo, que só agora meus ouvidos tardios escutam no premir dos dedos às letras - derradeira tecnologia, o quanto do conhecimento não é póstumo? - e que eu danço quando sou feliz, o que, hoje em dia, é quase sempre.
Mas é claro que quando se tem medo da noite por não ser dia, e medo do dia por poder ser noite, que podem dizer uns pros outros que a felicidade é fácil e feliz. Não. A felicidade é um momento crítico, é um chamado às armas da espécie, um se aferroar aos ossos e a carne primieva, oriunda do primeiro sopro de pó de outrem, estrangeira estrela que não o grande Sol. É preciso uma crueldade clínica, medicinal e técnica para se ser feliz bem. A felicidade é o cálculo de tudo aquilo que ri do seu mais terrível, e que, por excelência se define por terrível e atroz. Ondas batem às costas num mar vespertinos e salobro, e cada rechaço em espuma é um saber e tudo pode fazer sentido para quem não tiver medo de prender a respiraração e arder os olhos na cultura da verdade e de todos nós.
Hora da manhã, infância. Hora pequena e eterna que dura até que acaba, como todas as coisas boas, assim de repente. A quebra é o fim, e ter um fim é um bálsamo, qual homem mortal já teve um fim que não fosse anônimo? Quero ter um fim com nome e datado no carbono quatorze, por pura extravagância, por que pra mim ser é uma arte, que se faz desde a cama à cova, com o maior número de parceiros possíveis (e nisso incluo amigos e inimigos, isto é, a família e quem me dá o meu sangue).
É me tão curioso o quanto eu ainda me repito bem, e, se me atrevo a contradição, me imito melhor do que jamais fui. Falo do medo de antes e me agora vem a ânsia de vômito - estou doente, estou louco? - não. Sempre tive um pouco de bruxo, e agora tenho de sê-lo de novo. A urgência da ânsia, da infância, da hora eterna, do nada neutro e insípido. Do rastejar bípede pela existência indigna dos deuses e do fim que acaba quando acaba. Por que eu sempre quis o fim de um eu - eu sempre quis ser todo mundo.
Isso tudo é minha vida, mas isso não é uma biografia, isso é vômito e visceras, tenho escamas de réptil e subo pelo chão que são as suas paredes, meu amigo; chego a Ixtlan pela manhã e não trarei de volta boas notícias (você sabe que eu não amo mais, só quando eu ainda consigo escutar música e ser filho de alguém, mas esse alguém é um só).
A sobre-vida da sobrevivência: querer viver mais do que a vida num único instante, antes do átomo e do tempo e do espaço; antes do grande dilúvio que é vier num mundo seco e úmido onde ululuam os amores findos e secretos - seria isto a minha tão desejada morte, a última amante?
Ah, mas isso seria uma resposta tão fácil e anunciada desde as minhas primeiras noites torturosas sob os lençóis no escuro, que ao me descobrir, me veria quimera, parte criança, parte homem, parte nada. Ainda hoje, quando amanhã eu pensar num amor ideal, pensaria na pulsão das mão ásperas maiores do que as minhas e do quão delicado eu me falseei para poder atrair um outro tão tenaz e ardiloso como eu e confundirmos enfim, aquilo tudo que deu a gênese do mundo dos homens e que Deus viu na maçã e sua serpente: o carinho e a violência - as ânforas unívocas da última saciedade.
Quebrarão-me os ossos e torcerão-me as vísceras os abalos sísmicos dos grandes amores. Na noite de lua do que se segue dos escombros, gosto de pensar que serei capaz de fazer poesia pequena e singela, quase sem nome, mas não sem o metálico do sangue. Só para um dia, para uma promessa, na qual eu terei imolado tudo para não ter mais nada e não sentir libertação, mas só argentinas correntes nos pulsos, bater-me de frente com o mais valoroso inimigo, aquele que me indignará até o fim dos ecos e dos dias (no olho oco de Wotan, Fenrir pula e abrasa a si mesmo; a tragédia caiu junto com o abismo - que se faça, enfim, a grande comédia) e ao qual infligirei sem misericórdia toda a doçura de um amor que não se dá nem para o mundo todo. E a qual resposta deverei fazer ouvidos moucos para não me machucar? Ainda seria de carne se pudesse me quebrar no seu tato brusco, justamente quando adivinhasse o quanto de ternura nisso se esconde - será que alguém aguenta o peso todo da crueldade que necessita cada dia para ser vivido? Ainda mais, se desejar-se ter algo como uma vida toda em uma só pessoa.
Medo, terror, pânico. Tudo pode acontecer e não vejo mais do que um par de olhos e olho eles tão de perto que tudo não é muito mais do que um pouco feio. Assim já olharam os deuses para os homens e a terra foi feliz. Antes da beleza era muito fácil e pouco cordial ser feliz, mas agora, acho que alguma constituição das Samoas deve garantir tal fato como direito irrevogável das pequenas águas vivas a serem tragadas pela sedes das águas expandidas. Vejo olhos e batemos os ossos um contra o outro, e sabemos que nossa cama é partilhada por todos aqueles que já cortamos o pescoço no desfrute mais cruel (será que ele também já asfixiou alguém, como hoje eu ainda desejo fazer - me resta um pouco de reserva, ainda não sou tão jovem quanto queria), mas há a carne, e onde ela há, só há redenção e pecado de abundância.
Púlpito e aclamação e o vento bate sem horas e não há poeira nos móveis, só o pó de toda a história desde que uma mãe amou tanto um filho que deu-lhe de beber do seio sem nenhum desejo (ao menos por aquele instante) e tudo se faz tão rápido e mudo. Ninguém desconfia da eventual traição e ninguém a trairia em seus gestos, nessa dança que de tão última, sempre se fez desde as primeiras noites (a tensão é um choque que não deixa de se sentir nem mesmo no repouso).
Em algum momento do sexo, eu o amei mais do que Deus amou seus nomes num livro de homens, e ele sentiu o mesmo em relação a mim. Um de nós partirá primeiro, mesmo que durmamos abraçados e não saberemos se quem ganhou foi quem ficou ou quem saiu. A farça do castigo é ainda masturbação.
Gozado, me sinto agora um velho tomando seu chá, e olhando as crianças da varanda. Não são minhas, mas sinto que o são. Meus filhos são mais velhos do que eu era quando jovem. Se falo de forma confusa, é porque para mim, tudo isso é muito claro. Mas se me permito uma dádiva de ingnorância e delírio, digo que a morte e o amor são a única saída do tempo, o grande mal de todos os homens. Sem o tempo, não há filhos, não há um dia, não há uma gota de mar para se afogar e não fio de adaga para no peito amolar. E ter para si em um eu é a grande violência que se pode atirar às vistas do tempo, que ri-nos ressentido do grande ardil e enferruja as obras (e no silêncio em dobras, esconde-me um sorriso de sileno e digo: nem o caos já foi)