quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Vida doméstica

Recostado num canto do quarto, ajustando as costas nos lados das paredes, em meio aos lagartos, ele observava - não sem um certo horror - o lugar desolado em que ele se encontrava agora. A casa de proporções e mobiliário pobres, seu pó e inquilinos secretos e inumeráveis. Talvez, sequer fossem lagartos, de fato, mas lagartos era tudo que sua vista alcançava em suas campanhas medrosas por tão desterradora realidade. Que luz medonha não era aquela que trazia tais imagens para seus olhos e fazia de seu tato um eterno mentirosos dos infindáveis terrores que o cercavam lá.
Andavam rápidos pelas paredes. Trespassavam os limites que antes fixavam a casa como quebra do interno ao externo. Chegavam tanto pelo telhado quanto pelas janelas e pelas frestas da porta, dependendo do tamanho. Independentemente do tamanho, mesmo um lagarto pequeno já era lagarto demais. Algo como uma miopia psicológica o impedia de observá-los com sincero afinco. Tudo que sabia deles era seu jeito desengonçadamente veloz de se locomover por onde ele não o poderia, sua cor escura, matizada entre o verde e o azul bem fortes e fechados até o preto. Talvez, tivessem até dois olhos e um coração. Mas não precisariam desse tipo de descrição enquanto habitassem a casa - e a sua vida - como legião. Estava sitiado.
Pó e lagartos. Só isso acompanhava os seus dias naquela casa. Às vezes, se estressava tanto com seus pequenos solavancos de espanto pela casa, em seus procederes de manutenção paliativa - que mais lhe permitiam esquadrinhar as regiões dominadas pelos répteis do que realmente zelar pela habitação - com os insetos mortos e as carreiras desesperadas dos escamosos rastejantes e sem idade, quando ele dava por abrir uma porta que até então parecia uma dispensa eternamente fechada, que ele esquecia de qualquer outra vida que não fosse aquilo.
Que não fosse dormir num colchão velho e furado e vendo no preto dos olhos fechados, milhões de pequenos olhos negros que brilhavam estranhamente no candeeiro de seus medos infantis, ou então, sentindo as cócegas nervosas que seu corpo lhe simulava no suava contato com o lençol furado, ele se punha facilmente a pensar em pequeninas e infinitesimais aracnídeos subindo por suas pernas debilmente descobertas. Quando terminassem de tomar a casa, tomariam a sua carne e lhe despedaçariam em seu sono, que nas suas elaboradas elocubrações, mais se assemelhavam à vigílias de fieis de corações retorcidos pelo ódio das gentes mesquinhas de províncias renegadas de deuses e cheias de demônios antigos e domésticos.
Sabia ele se torturar muito bem também. Não ignorava que se não lhe tivessem sido infligidos tantos infortúnios inesperados para um homem de compleição tão citadina quanto a dele, não hesitaria sua imaginação de lhe pregar truques com os mesmos fantasmas de sempre. Secretamente, sabia ele, seu corpo regojizava no inesperado pontapé desavisado que ele desferia, amiúde, a um lagarto apalermado, e sua mente se contorcia feliz, em ganas de prazeres expansivos e tropicais, no seu lento labor de vingança contra as aranhas e suas moradas insidiosas em tramas intricadas para afogá-las e esmagá-las - com sorte, adivinharia ainda como queimá-las também.
Sua única posse e território dentro daquela casa era a singela mala de viagem que ele trouxera consigo e que guardava suas mudas de roupa. Enquanto ela permanecesse um reduto seguro, no qual ele poderia tocar sem medo nos tecidos, sem aventar pela possibilidade de aranhas microscópicas em suas cuecas, ele poderia ser feliz, mesmo que inconscientemente. Lá, ele vivia o biológico da vida, sua eterna contenda e vilania generalizada; seu ódio era indiferente e seria passado a seus descendentes se ele não fosse um desses homens de vida obviamente estéril.
Era uma distração inocente que lhe ocupava os dias, e, às vezes, dependendo do quão bem imergisse no jogo, era capaz de presidir sobre a vida e a morte dentro daquelas paredes brancas e cobertas de seda milenar e tóxica. Fazia breves incursões por todos os cômodos da casa, todos os dias, para manter a moral alta perante todos as pequenas facções dominantes de cada quarto e manter seus números estáveis, sem tentar destruir seus focos, apenas evitando sua difusão repentina para uma zona ainda não ocupada.
Ao mesmo tempo, mantinha a maior parcela de sua energia e imaginação para a sala de estar, onde, por razões a ele desconhecidas, logravam residência muito menos lagartos nas paredes descascadas e também não se encontravam armários para o reduto de insetos das profundezas do pesadelo cotidiano. Munido de um balde d'água, uma vassoura e dois panos e um par extra de sandálias velhas - com os quais se deparou ainda na chegada à casa, empoeirados, por cima de um tapete deslocado no lado da porta - ele proclamava guerras aos donos de direito daquela morada planejada pelos homens aos animais. Já tinha conseguido para si um pequeno quadrado onde antes ficava o velho sofá empestado de bichinhos horríveis e reduzira quase que todo o resto do cômodo a uma área de forçosa paz com os lagartos, que por ela transitavam, agora, apenas pelas paredes e não mais pelo chão. A mobília fora drasticamente descartada tendo em vista seu potencial de fortaleza para toda sorte de criatura macabra e enxame que pudesse abrigar.
Acabava por nomear alguma aranha, ou lagarto, particularmente mal encarado ou por demais estático, por alcunhas militares. Ele era um guerrilheiro nas montanhas ermas em que se encontrava. Seu outrora etéreo mundo de brumas e liláses dera lugar a uma terrível e preciosa quimera: uma guerra que ele jamais conseguiria vencer contra a própria natureza que lhe abrigava de pesadelos ainda mais insondáveis.
Qual não foi sua felicidade quando encontrou uma marreta - quase uma maça medieval - nas rápidas escaramuças por um dos quartos perdidos por ora! Pôs-se a correr pela casa e destruir tudo que julgasse inútil ou traiçoeiro a seus intentos modestos de uma habitação sem visitantes indesejáveis. Com esmero e paciência, e, há quem diria até, não sem uma dose de técnica espontânea, capaz de inspirar sentimentos elevados em quem a observasse em ação, ele caía por sobre o mobiliário incauto tal qual tomado pela fúria com a qual um teutão ansiava por tomar os deuses como seus pares. Destruiu armários velhos na suíte, se livrando dos escombros com auxílio de uma perigosa estratégia envolvendo fogo e álcool de uma pequena dispensa de bebidas que ele se deparara ainda outro dia, inesperadamente. O plano imbecil funcionava porque a vodka era barata, a cachaça era farta e mesmo o mobiliário original que ele tencionava reduzir já era bem modesto para que o fogo não se alastrasse pela casa contanto que fosse ele rápido o bastante para controlá-lo uma vez concretizada a empreitada. Investia também nesse tipo de tática, pois julgava que de alguma maneira isso devia afetar seus adversários inumeráveis, invisíveis e onipresentes.
- Eu vou queimar todos vocês e suas dinastias condenadas, ele ria em meio a pequenas labaredas caseiras. Seu único medo era o de sufocar, pois as janelas abertas não davam muita vazão a fumaça que se fazia. Mas depois do terceiro armário queimado e de uma cama de casal quebrada, seu furor pirotécnico arrefeceu. O momento da ofensiva passara e agora, apesar do quadrado de entrada da sala permanecer o único lugar no qual ele se sentia a salvo, já podia contar com um quarto (um quadrado nu, guarnecido por uma cama no seu centro - toda a distância possível das paredes e de seus passantes - que contava com o já mencionado colchão velho e o lençol furado) e um banheiro, que por algum milagre de uma deidade local e generosa, funcionava magicamente, apesar de não ter água quente disponível.
Ainda assim, as imagens de seres microscópicos, rápidos e indiferentemente impiedosos correndo por todos os cantos de sua visão o solapavam constantemente em seus cada vez mais frequentes devaneios e delírios vespertinos. Visualizava, sentindo uma certa mescla de pavor e graça, seus braços alvos diligentemente lavando os pratos certa noitinha, cantando uma singela canção, confortavelmente um tom ou dois abaixo do original, quando uma aranha se precipitaria de sua teia estendida desde o início dos céus, passado por algum pequeno e imperceptível furo do teto, para se propulsionar dentro de sua boca em desavergonhada abertura musical.

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