domingo, 1 de janeiro de 2012

Sanctis Januaris

E o cheiro que me faz posse é o de meu sangue vertido pela navalha dos dentes enfileirados em ganas e garras. Osso na carne e não muito mais do que a matemática primeira dos biólogos e dos afetos. Mas é que, às vezes, isso nem sequer parece se gastar. Então eu já não me basto mais.
Então eu já não lhe basto mais. Porquanto eu fora aquele cuja temperança lhe servia de andrajosa muleta, cuja virtude estimada não o era por você menos do que todas as somas dos infindos deleites do palácio - então, eu lhe tinha.
Essa é uma cruel verdade. Aliás, qual a verdade que não se firma com o gravar do fogo na pele queimada? Eu lhe tinha e não o contrário. Quanto tempo eu tive que dormir para poder sonhar que não era assim? Toda uma pré-história que até hoje eu me minto de gulodice - como quem rouba um doce e não quer as calorias; como alguém que só quer roubar algo do mundo; espere. Melhor, como alguém que quer tirar algo que está no mundo e levá-lo ao além desse mesmo mundo, até o seu nunca-mais.
Assim eu roubo tudo que brilha aos meus olhos, até o seu lixo. Eu sempre salivei com o seu mais pequeno, e descartei o que poderia ser visto como o mais precioso - e ainda nem é ano-novo.
Mas, tudo tem um dia em que acontece. Em torrentes, quase uma monção. E não tem muito mais do que as coisas todas acontecendo de uma vez, tão grande que quase não tem tempo para te contar. Porque você vê que os meus olhos tem um espectro de cores foscas e malvas, quase sempre num azul-marinho - mas entender não lhe faculta a magia.
Não que seja algo de grande ou até de bom, mas é. Não que também muitas coisas não sejam, mas a magia que meus olhos não veem em cores é além do mais e menos das outras coisas. É sem terminar, apesar de eu me mentir a certeza de que começou.
Ah, mas você não capta a sutileza das membranas que eu tenho sob a pele dos dedos. A grande rede nervosa de contatos que um estranho me causa no seu soslaio próximo e imberbe de um beijo no escuro - e, às vezes, até as mulheres. Sim, até mesmo isso - só por que não é eu e nem a mágica por ela mesma. Agora, à fórmula, se adenda você. Tem que não ser eu, você ou a mágica para acontecer.
Sobe entre as veias e o ar tudo aquilo que me decepciona, que me inspira, que me relega a um baixo de depressão, que enterra meus pés em areia e terra antigas e fofas - receita para a fertilidade. É quase tudo de graça, no fim das contas, não tem recibo e nem garantia tudo aquilo que recebo de minhas próprias entranhas, mesmo aquilo que me mata e me ganha de volta para mim mesmo.
Tudo isso e menos é o que eu vejo nessa pequena e inocente fagulha mórbida do desejo incessante. De algo que eu não quero e nunca quererei, mas que me alveja de máscaras mil para dardejá-la à noite, como quem dedilhasse as cordas primevas que acordam do sono de morte, o amado de um eterno vesper. Isso dentro da ponta do meu dedo, perdido, traficado num toque elétrico e mecânico. Às vezes, para as paredes de um banheiro, enquanto eu fedo a cigarro e outras drogas.
Mesmo quando eu acordo e o cheiro - ele continua, saiba - e eu ando até o ponto de ônibus - pois, sempre há uma cama para mim em braços amigos que se cambiam como as águas de uma corrente jovem em ânsias de cavar seu desaguar na praia - e sei que me olham como estranho e invisível. E rio em vitória da impossibilidade da minha redenção como quem se risse de uma piada horrível e infeliz - como a castidade.
Sei que se pudesse, eu preferiria falar em enigmas, mas a mensagem em meu discurso segue reta em sua opinião até o alvo tencionado. A dor é mancha clara num alto-relevo da pele! Inexpugnável, pois não é espelho - é qualquer coisa de través que não nos faz dizer "Não" quando seria desejável. Há sempre um pouco na dor que é lascivo, mesmo que muito pouco, pois é ancestral e, portanto, o que há de mais emergente em nossos rostos, assim como o são as rugas dos risos inocentes da infância, as mais estampadas nos rostos velhos e cansados de um jovem burocrata.
O trânsito crepuscular do ano findo é breve e engarrafado: será aquilo, até que pare de se vomitar. Algo como um pequeno desagrado. Mas o que é isso para aqueles, que como nós, podem muito mais? Será que nós riríamos da plateia, se ela fosse possível? Não, mais até que isso. Agora é outra hora, e pede da noite um movimento outro, e vem a fuga.
Uma gota presa na boca da minha alma, água suja e envenenada que a física impede que caía. Verter é para as grandes chuvas que iniciam os tempos. O que tenho é uma ressaca de ano-velho e as mãos nuas. Sacolas vazias e palmas desfraldadas de Santa Ritas nas ruas de Copacabana - entende-me quando falo que, às vezes, tudo acaba e não é mais do que muita coisa?
O que tenho não é entulho emocional, apesar de não ter mais medo do que é feio e troncho em mim, como se adivinhasse a velhice decadente que se precipita em mim quando engordo, ou quando meu cabelo se quebra em um fio nas suas mãos, tão macias.
Quero mãos ásperas, quero ser imolado, eu quero sexo e quero ser de um deus. Desses que surgem de noite e cobram sacrifícios em sangue negro e traficado no revés do coração e do carbono. Alguém, que não alguém, para me dar a máscara na qual o meu rosto pode enfim crescer, até que não-mais.
Pode haver em mais de uma noite em fuga, mais amor do que em uma cascata de gestos despropositados e sem sentido. E eu sou um daqueles que os conhece e os deseja mais do que ninguém-outro-predador -
- Vejo o meu rosto na água furtada das rosas na calçada e na face da Lua. E mesmo quando acordo do seu lado, eu não sei até mais onde eu posso. Até que eu penso que eu corro, e o dia ainda começa com o meu café e o meu pão. Eu não envelheço, mas alguma coisa em mim vai ficando sedimentada. Eu me torno a música que eu cantei há muito tempo atrás antes de toda a vida de mim agora.

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