segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Diálogo

É tão bom ser bom quando minhas roupas cheiram à amaciante e o tempo está agradável! É quase como se eu ainda não tivesse deixado de ser criança. Um não sei o que de crueldade no meu calmo vigor - aquela sensação de poder parar o que se está fazendo para tirar um cochilo - e não tirar o cochilo.
Uma moral das creches e das crianças. Paredes sem cal em construção e muita poeira subindo, e eu sou alérgico. Nunca se consegue o que se quer, no fim das contas. Pois sempre se viveu o bastante para lembrar alguma coisa que não se exprime no nosso fora. Pelo contrário, parece pingar do sebo da pele.
E sem querer essa reticência estava anunciada no recuo do que eu já vinha dizendo antes de conversamos. Não, eu tento não falar do meu mais óbvio e do imediato. Senão, eu não acho que eu crio sem antes esquecer.
Posso, às vezes, esquecer dos meus números? Dos meus grupos, dos meus nomes? Não me sinto sufocado. Tenho nojo dos ofegantes pós-modernos pseudo-claustrofóbicos de si mesmos. Gosto da vida, pelo menos um pouco menos do que mim mesmo. Mas se eu não esquecer, acho que eu não crio.
Criar não é escrever, ou pintar, ou compor, ou cantar. Tudo isso é só mentir, e mentiras são ótimas, adoro todas elas, quanto mais refinadas melhor.
Porém, adivinho nos ossos, no que de meu há em rocha, que algo qualquer pode ser trancafiado em algo novo. Certos momentos em que canto ou no próprio sexo mesmo. Vejo que começo a digredir, mas não me psicologize. Precisaríamos de mais de um psicólogo, porque eu já fui muitos.
O café está quase pronto e as frases estão cada vez mais curtas. Já faz tempo que eu te escuto e não te respondo. É que você me conhece tão bem, quase sempre. Que nem uma ladeira que eu subi há muito tempo atrás, por nada. Pode-se dizer que então eu flanava acompanhado.
Eu flanava enquanto quem me acompanhava se lembrava de algo não propriamente esquecido, que ardia na pele viva até queimar. Agora, sem nenhum motivo, isso me vem a cabeça e sinto que crio. Isso não quer dizer que nada disso aconteceu, mas é algo mais, entende?
Acho que se eu não quisesse, me lembraria até dos mais pequenos detalhes e nem inventaria nada, só me recordaria. Não, não me lembro do dia exato, apenas do ano e de que era de tardinha. Saberia reconhecer o lugar e sei até o nome, mas não da rua.
- Você sente pudor? Você me olhou um tanto de lado, como que se isso lhe pesasse mais do que você se desse conta antes de dizê-lo. Não me olha nos olhos há um tempo, desde sempre que nos falamos à tarde na cozinha. Será que já lhe tinha contado a mágica que me toma quando tome cafés em cozinhas alheias? Achei melhor lhe responder.
Sim, é como se uma pessoa pudesse me escutar. Não me importa que não escute, mas eu gostaria de pensar que estamos num jogo, eu e ela. E que não tem nada a ver com ganhar ou perder, mas algo acabaria se eu lhe falasse mais. Prefiro assim.
- O jogo vai acabar algum dia?
O que tinha para acabar já acabou há muito. Por isso é um jogo. Não acaba nunca porque sequer começou. Quem o joga, na verdade, somos eu e você.
- Parece até que há algo de segredo e traição nisso. Acho que você está me enganando... o café acabou.
Não quero mais falar nada.
- Então eu posso falar, enfim. Você não sabe se pontuar muito bem. Não que eu o faça, mas no meu caso não tem muito problema. Sei dar melhor entonação do que você ao que digo, porque não dependo tanto assim de outra pessoa para saber o que eu sinto de mim mesmo.
- Realmente gosto desse frio. Antes de você chegar, separei uns três discos para escutar bebendo um vinho. Você sabe que não sou o tipo de pessoa que faz isso, mas acho que quero brincar de sentir nojo de mim, um pós-moderno asmático, ao menos por hoje. Gosto de frio fora de época.
- Por que você não volta a ler Heidegger? Ou qualquer outra coisa na verdade. Você também parou de dançar. Não que veja uma ligação entre os fatos, mas sinto que algo mudou. É, só dá para um de nós falar de cada vez. Não parece ter outro jeito.
Por favor, continue. Sabe que gosto de te ouvir falando. Poderíamos ficar assim por horas. Mesmo que daqui há pouco eu me fosse embora.
- Você não tem jeito mesmo. Acho que sei agora de quem falava há pouco. Acho você de uma puerilidade adolescente que beira o imperdoável. Você é quase um daqueles acadêmicos esquecíveis que surge no fim-de-século. Tem algo de "quase" e "preguiçoso" em você. Acho que é isso que faz você gostar tanto da vida à noite.
Vou pegar os biscoitos, estou com fome.
- Ótimo, não temos muito tempo até que ele chegue. Não gosto quando vocês se encontram. Ainda mais agora que meu cabelo está grande e fica mais fácil de perceber. Não ria, é uma das fatalidades de minha aparência.
Ele sabe que você não gosta de mulheres, então qual o problema?
- É algo mais, e você sabe disso. Não preciso subir uma ladeira com você (aliás, você já tinha me contado essa história em detalhes, quando ainda era um fato da ordem do dia) para que algo proibido o ameace. Ontem mesmo nós conversamos.
- Estávamos na cama e ele falava de você. Tenho quase certeza de que ele gosta de você. Entende; a situação é mais complicada do que parece.
Entendo perfeitamente. Você parece que quer odiá-lo com todas as suas forças. Será que se você não é capaz de se fazer infeliz como antes, você o forçará a fazê-lo. Não seria amor do contrário. Esse tipo de coisa não vem de outro lugar que não um leito pleno e compartilhado. Você diz que mudou, mas você nunca foi quem você achava que era antes.
Acho que você fracassou. Você está amargando e nós trocamos de lugar. Sinto a minha voz mais forte e sei que te domino agora. Mas isso não se diz, é crasso. Acho esse um som apropriado para mudarmos de assunto. Não quero me intrometer na sua feitiçaria de infelicidade mais do que já fui sem o saber.
Você se lembra do dia em que nossos pais se conheceram por acidente? Foi em algum feriado em que resolvemos ir ao cinema em família. Seu pai sempre foi mais esperto do que a sua mãe e muito mais do que os meus juntos. Lembro-me de que ele me atraiu bastante naquela noite, enquanto jantávamos todos juntos naquela pizzaria.
Eu o via suar enquanto tentava acompanhar nossa conversa, nossas piadas e nossas referências. Ele sentiu o secreto que estava sempre entre nós. Pelo menos até você conhecer o Rodrigo (não, isso já deixou de me incomodar há tempos). Enfim, ele era um homem sensual e inteligente. Sua mãe sempre me deu a impressão de ser uma velha feliz com o seu marido, como quem tem uma vela que queima um fogo manso e assertivo, com tom de conforto.
- Você é de uma fatal deselegância. Gostaria de dizer que isso me fascina, mas não é o caso.
(Se deitaram e beberam vinho, enquanto ouviam música, prestando atenção na sombra das coisas à luz da lâmpada em plena tarde de verão. Um pequeno idílio secreto, uma fuga de nada, um quedar estático - quantas coisas não se dizem ao chegar a uma palavra para elas)

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