segunda-feira, 25 de julho de 2011

Cruzar aquelas vielas escuras no cerne da solidão era uma tarefa árdua e arriscada - mas como recompensava bem! Cada sombra era uma ameaça e minha miopia sempre soube tirar o melhor dos borrões que passam a me cercar - tudo é fantástico e perigoso, monstros e arlequins retorcidos por minha cega teimosia de não usar óculos.
Eu mudava de calçadas, eu apressava os passos e elegia heróis no cair da chuva. Me aproximava e os usava de escudo contra os que tomava pelos vilões. Sem bem ou mal, os heróis eram aqueles que eu via melhor e andavam no mesmo sentido que o meu, só que a frente. Inversamente, eram os vilões aqueles cujos borrões eram negros e retorcidos a princípio e seguiam para o embate comigo. Era um prazer baixo medievalizar minhas madrugadas em justas de cavaleiros, mas esse era um dom só meu - feiticeiro e donzela, o poder e o ego - e era tudo tão lindo sobre aquelas ruas olorosas e amiúde povoada de seres ébrios e caricatos, os quais, para o meu deleite ocasional, interagiam comigo espirituosamente, quando num dia perfeito, uma velha mendiga me confundiria com uma menina, o que comoveu a alegria geral de minha trupe.
Era bom andar com grupos pequenos, com pequenas diferenças entre si, um degradé que não deixa de ser um tanto monocromático. Enquanto alguns viam nesse humor uma afetação, as mais elevadas riam dos risos entre os risos; do riso da mendiga para mim, do meu riso para ela que na verdade era para todos, e ainda o riso que a plateia dispensava ao ator pro-eficiente, que cumpria fatal as deixas que a noite de espetáculos lhe reservava. Melinda era baixa e voluptuosa, mas era um primor técnico rir com ela do mundo e de suas criaturas, caprichosas crias do acaso e da miséria inflacionada.
Mas agora, eu estava sozinho e, de fato, havia perigo naqueles caminhos. Meu fim seria, porém, outro dia, constatei eu indiferente ao chegar nas artérias mais congestionadas daquela noite e ver gente em cada perspectiva possível. Como cresciam aberrantes aos meus olhos, eu que até uma hora atrás estava a me rir com elas e dançar suas músicas ruins e seus amores furtivos para a alegria de todos perante a comunhão máxima das vidas que não as suas próprias.
Tal qual outrora os grandes banquetes precediam os dias de rigor e fome, o inverno que se anunciava a cada novo dia nas cidades de luz e lixo era uma morte anônima e cifrada na privacidade pequena de cada um desses comensais que agora viviam tudo aquilo que julgavam ser excessivo e supérfluo - como eram moralistas por assim crerem ser aquele trista e comedida amostra de arroubos cômicos e furtados algo digno de punições maiores do que uma ressaca.
De qualquer forma, eu me sentia seguro por estar no meio deles. Porém, não ando sozinho de noite para me sentir seguro, e se é o caso, o melhor é eu voltar para casa.
Mas eu me detenho e dou voltas nas ruas movimentadas, driblando ostensivamente os pequeninos ladrões, e languidamente pousando os olhos sobre aqueles mais felizes, como se fosse eu quem pedisse as esmolas de uma felicidade rasa e de graça, que se destinava a uns felizes eleitos de divindades menores e mais pródigas - eu que rezava ao Terrível, aquele quem desfaz os absolutos e oblitera a verdade toda na torrente de si próprio - enquanto procurava por uma pessoa em particular. Estava escuro e nessas horas que eu cria ingenuamente que era mais fácil de achar aqueles que reluziam ao meu olhar - ah, como posso ainda ser doce na vulgaridade! Estimulo perverso minha coqueteria.
Levantava os olhos expectantes, como se levasse à luz ao caminho do tesouro, mas para nada nem ninguém. Mais cedo ou mais tarde, eu me daria conta futilidade dessa empresa e me subtrairia dessa noite. Minhas dores levariam meus pés para a casa e de lá, eu iria até o meu nunca mais.

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