domingo, 8 de maio de 2011

Capítulo I

Estava conformado ao sentar na mesa. Olhava gratuitamente, sem muita atenção, para os vidros das janelas à sua frente, que dividiam entre si a graça de estarem imediatamente à sua frente.
O outro falava e falava, e realmente não era importante o que era dito. Talvez para ele apenas, mas Abel se achava perdido nas brumas de um prazer pequeno e fortuito. Uma noite de frio, uma noite de amor espontâneo também, e agora estava na cozinha com um homem que não amava por pura incompetência própria.
Ao menos a cozinha era uma daquelas cozinha de família, nas quais você pode atribuir reuniões e conversas a um passado inventado e então atribuído ao cômodo em questão. Podia-se dizer que havia uma realidade aconchegantemente próxima da imaterialidade que é o mundo de cada um, querendo englobá-lo macrofagamente, chamando a subjetividade às armas e à luz.
Abel não queria lutar, seria um movimento por demais expansivo, após uma campanha, que de certo vitoriosa, não menos por isso laboriosa, porém isso não seria o bastante para fazê-lo não lutar contra uma felicidade se eminenciando num horizonte próximo. Não deixaria, não mais, que fizessem da sua vida um horizonte.
Talvez fosse o licor - ainda desconhecia por completo os efeitos do licor em seu corpo, ao menos da ação particular do licor, sem outros componentes de um quadro geral de etílica agregação - ou a cerveja - não, não era a cerveja, por que, francamente, cerveja é a mesma coisa que água para quem ergueu o fígado de fortalezas muitas da mãe de Ruth - ou talvez o amor que lhe era drenado pelas lembranças agora reavivadas - afinal, em menos de um mês, far-se-á um ano desde que tudo começou, desde o compasso do derradeiro fim de uma eternidade estática - aquecendo os tons de sépia em matizes mil, enfim, apelando à estética de uma infância pura e ideal que jamais o tocou, mas o faz, por isso mesmo ansiar pela vida em olhos de caleidoscópios e quimeras feitas por olhares recortados em jogos de espelho, em perspectivas cascateadas e distantes de qualquer esfera mais primeira de percepção.
Partiu-se o momento e ele se tornou sólido e dotado de uma agudez pagã e imperdoável, reduzindo assim o gérmen da felicidade ao resvelo na sua epiderme - como sentia frio se agasalhara precariamente e usava meias. A felicidade se escondera lá, mas não o aquecia - restando então seu corpo ao mundo, dado como o mármore, mas resplandecendo como picta ônix. Figurava-se mais uma vez terrível. Isso, ao seu ver, era uma vitória de um sabor amargado pela fuligem de um tempo que não o dele, mas que descia doce pela gargante e lhe infligia ao falar a urgência de uma morte já consumada, ou seja, era fogo fátuo ao falar pela boca de uma estátua.
Mas o outro ainda falava - não era nenhum problema que falasse de todo, mas a sua necessidade para tanto suscitava em Abel a compaixão que os seres fantásticos e tortos reservavam para aqueles dotados de um ânimo real, forjado pela inércia da olaria dos existentes - e uma leveza tola embriagava Abel, como um ópio que ascendia das grotas mais imas da terra. Enternecia-lhe o fato de o sublime tão ostensivamente lhe tocar naquele momento e não mais ninguém - era inconcebível que alguém partilhasse de sua... felicidade? Não, não era felicidade, pois não sentia nessa glória narcótica o peso inclemente de uma felicidade. Podia ser terrível naquele instante, mas não se mostrara ainda cruel o bastante para ser feliz. Era talvez isso mesmo, uma glória sem nome, sem batismo e por isso mesmo pagã como ele - até que se lembrou do fantasma que esperara desde sempre para começar a assombrá-lo, e cujo prazer sentia sempre na carícia sem dó de ventos quase sargaços.
O fantasma agora lhe revelava, oráculo, que se ninguém podia ser por essa glória aspergido, pelas mãos outras e negras, ela podia se impor ao demais e isso já acontecera e fôra por ele presenciado. Essa lembrança o forçaria a percorrer caminhos pelos quais há muito já não trilhava e molhar os joelhos de águas turvas e malvas. O outro falaria até que ele voltasse de sua incursão pelos três estados físicos das brumas da memória.
Antes de partir, dirigiu ao outro um olhar de não confessada despedida, pois não podia negar a influência que o outro tivera nesse pequeno toque de uma filha bastarda do amor à sua pessoa. Infundida a etérea e imperceptível mesura, largou as mãos sobre o colo e se pôs a escutar com falso engajamento a narrativa da vez, e sim, já a ouvira antes, mas enfim, que se poderia fazer? Afinal, já estava com os pés molhados e constatara com espanto que o outrora núbio canal se afundara num charco, onde o ritmo implacável da correnteza não se via pelo lodo ao fundo das águas diáfanas sobre o indefinido solo.
Era nessa clareira do tempo que devia mergulhar e chegar ao reverso da vida, sim, tinha que voltar à eternidade sem se doer ou protestar e talvez se afogasse. Mas a memória das águas era amor e caso o tragasse sabia que seria cativo imortal do próprio coração a jamais deixar de bater, ecoando a vida lá fora, que se esvai.

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