domingo, 12 de junho de 2011

Estava escuro e era ela sozinha naquele canto privilegiado, escolhido palco de seu delírio, cuja vista para as paredes nuas seria capaz de desvanecer em ondas suas pequenas loucuras. Estava assustada e seus olhos eram grandes como os de um animal sem mais do que um lugar num esquema maior do que todos as bestas sobre a terra, brilhavam orbes débeis e claras, clarabóias do claustro ermo e úmido.
Ria um pouco para si, como se o tempo fosse por isso suspenso e julgasse tudo por um absoluto em lâmina fria e seca. Nada era mais real do que uma mentira, nada era mais real que as pequenas coisas que ninguém nota com ela.
Aquele pavor todo, um horror que lhe imobilizava pela garganta, em garras recurvas, lhe dizia no tato brusco que aquela podia ser a hora que toda a razão abandovana os homens à sua própria sorte. Agora, as regras seriam outras e ninguem poderia entendê-las. Estariam todos sós.
Das sombras tudo podia vir. O quarto era pequeno, bem mobiliado, leve. Ninguém diria que algo tão terrível pudesse ser comportado por aquele quarto. Qualquer coisa mais do que um sofá lá seria rídiculo e não poderia respirar se ainda vivesse, era um quarto de atmosfera plástica e agradável, convidando o perigoso e o cruel para fora de maneira exemplar. Lá só se poderia morrer de placidão, nada mais faria sentido a não ser essa tragédia. Mas agora, ela já não tinha tanta certeza disso.
Era como comprar sapatos quando criança com seus pais. Os corredores tinham cheiro de qualquer coisa que não as que os olhos viam, mas não era nada distinto. As comidas, as pessoas, as plantas e os bancos, tudo isso era paisagem, tudo que parecia respirar e exalar eram as roupas e, particularmente, os sapatos.
As lojas de sapato, ricas no couro étero a aspergir docemente as narinas, subiam pelos dutos quase que sólidos, e ela, tão inocente, achava que tocar nisso era possível, mas algo como um código tácito sob o qual ela jurou observância antes de entrar no shopping a impedia de o fazê-lo. Não queria que ninguém olhasse para ela como olhavam para as roupas e os sapatos, queria não ser olhada como todas as outras pessoas que não estavam tirando dinheiro de suas carteiras.
Estar agora no quarto escuro, sentir que poeira podia se acumular sobre seus ombros como sobre os móveis a fez pensar que vivia após o mundo que a acolhera tão calorosamente indiferente até então. Parecia que só agora que vivia algo como um "eu", e experimentava o gosto de tudo, e era possível provar o doce como um toque ou o cheiro de mofo como uma frequência especial. Era o fim do mundo e nada mais importava, estava livre e morava com dois estranhos, ela mesma e um homem na sala, vendo alguma coisa na televisão - se lhe dissessem que amanhã todos os homens andariam de cavalo entre os carros parados ela acreditaria porque já não mais se importava com qualquer coisa que fosse e a verdade era privilégio daqueles que amavam o mundo como era.
Não mais, ela só era capaz de aceitar do mundo tudo que ele pudesse projetar sobre ela, passivamente. Passiva esquiva ela era inantigível enquanto estivesse parada olhando para aquelas paredes, parada naquele canto.
Estóica, ela persistia, desafiando o mundo todo que vem junto antes e depois dela. Ninguém poderia lhe atribuir um sentido ou razão para aquilo, só por estar parada ela se sentia tão fantástica quanto um unicórnio, quanto um réptil em seu couro pantanoso. Ela por dentro, sem externar nada, estava terrível - não queria derramar a glória que se agitava no seu imo, com risco de que tudo se acabasse ao ser desvelado o mistério em uma forma tão pedestre quanto a de uma loucura privada e conjugal à meia noite; não, ela queria mais, queria em cada ponta de unha a arranhar a parede ser sádica, e não provar nada com isso, e seguir eternamente desapegada de um propósito a embalá-la, a ensacá-la em algo que não a deixava respirar por sua pele.
Ela, que antes fôra tão patética, tão adequadamente medíocre, com seu cabelo louro e curto e liso, tão plana em sua pele clara, recoberta por uma fina penugem auréa, com um nome simples, quase mnemônico se recitado com o sobrenome do pai, capaz de definí-la geneticamente. Naquele instante porém, ela podia finalmente rir-se dela, adivinhar o sexo jamais plenamente satisfeito a crepitar um esgar sob suas roupas, invisível e indolor, mas sobrepujante ainda assim, e até mesmo rir alto disso tudo, para todo mundo ouvir. Todo mundo agora era o tudo que não ela, por mais que isso fosse óbvio só agora ela podia perceber claramente o que era ser sozinha e mulher e gostou.
Ela ia começar a imaginar que estava olhando por uma janela, como se para deixá-la mais confortável e inspirada para pensar numa paisagem nova e inventada, de sua autoria reconhecida e assumida, quando a porta se abriu e a luz do corredor cortou a fantasia como só uma luz pode cortar o negror das maravilhas que se escondem no além-mundo dos homens que reverenciam o mítico e o desconhecido, isto é, a mágica.
Seu filho se aproximou desajeitado dela, não muito acostumado a escuridão do cômodo. Era uma criança esperta e percebia os vestígios sangrentos do que lá se passava até pouco, mas não o bastante para se sentir responsabilizado por trazer o sentido de volta para lá. Olhou para a sua mãe com uma boca expectante, como se visse um monstro que sempre esteve lá - anos mais tarde, se perguntaria como o pai pôde alguma vez se medir com uma mulher amazônica como aquela, capaz de esmagar tudo com um olhar que se recusava a dar por um certo desprezo e pudor; ele que era tão homem e dado, tão certo e suprimível, e ela que não era muito mais que isso, talvez até menos, mas talvez fosse esse o motivo, a explicação do possível e do crime que daí poderia se seguir - e pediu a janta, ou qualquer coisa. Ninguém escutou ao certo, de tão fixos que estavam em seus papéis de opositores num jogo de vontades ocultas e pulsantes.
Ela olhou para ele, o efeito de sua jornada introspectiva ia se desfazendo lentamente, e o fez com um carinho genuíno e volátil, de graça. Tomou o pela mão e foram para cozinha, olhava-o de cima e percebia seus ombros pequenos, suas pernas finas e o quão fácil aqueles dedos quentes quebravam. Ele já tinha quase sete anos e nessa idade todo o charme da primeira infância estava frágil e as imperfeições futuras já se maturavam; ela pôde perceber como aquele nariz do filho lhe seria um problema, coitado.
Não se deu muito trabalho, abriu um pote de biscoitos, pegou uns quatro e deu pro filho numa cumbuca branca de plástico e colocou um pouco de leite para esquentar no fogão. Está noite ela dormiria apenas depois de se pentear como uma princesa, como uma aristocrata amarga que via em cada madeixa refletida na penteadeira uma pista de felicidade fugidia, está noite e todas as que se seguissem dela, ela seria toda dela mesma, ciente de que ninguém podia amá-la tão bem quanto a estranha que olhava para ela dos dois lados do espelho.

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